quinta-feira, dezembro 18, 2008

Hereditariedade


Anteontem à noite, ainda que por instantes, quebrei um bocadinho do mundo da minha avó.

Eu explico. Nos seus 94 anos de vida, a minha avó já não tem vida social. Para além da pouca mobilidade, já pouco vê (digamos que ainda reconhece os netos mas que a taxa de erro ronda os 5%... e se lhe perguntarem se o que tem no prato é peixe ou batatas, aproxima-se dos 90%). Ora, quem pouco ou nada vê refugia-se no que ouve, e se o volume for criteriosamente ajustado (i.e. no máximo!) é quase impossível não ouvir. Aparece então, para preencher o vazio dos dias e o lugar no céu, a sessão do terço, religiosamente acompanhado na famosíssima RR (também conhecida por Rádio Renascença) todos os dias às 18.30. E se por acaso passa o relato da bola ai o relato da bola! Fica desconsolada mas não usa palavrões pois a minha avó sabe palavras esquisitas mas não diz palavras feias. Ora,

o dia tem 24h e os 30 minutos de terço é coisa pouca para quem já não tem muito que fazer senão dormir, esperar pela hora das refeições e circular de tempos a tempos para cumprir calendário(s). Ora, acontece que

por volta da hora de jantar, enquanto se aquece debaixo das mantinhas no sofá e vê com pesar a minha mãe subir e descer 2 lanços de escada para lhe trazer a sopa, anuncia-se no grande ecrã (não tão grande que seja visível para os pequeninos olhos da minha avó) o magnífico, único, e portador da boa disposição, senhor Carlos Malato. Ora,

a minha avó, perdida nos êxtases da audição e na voz sonora daquele senhor, lá acaba por prestar atenção às perguntas. E visto que até sabe palavras esquisitas lá acerta volta e meia nas respostas e, pronto, ganha afecto ao senhor. Então, nas noites em que apareço, solta-me ansiosa a confissão

- daqui a pouco vem A Herança!

Não é que eu esteja por-dentro-destas-coisas, mas na outra noite achei por bem esclarecê-la. E actualizá-la. Afinal, ainda que seja Natal, as verdades têm que se fazer saber.

- oh vó? Sabe aquele programa do Malato? Aquele programa que a avó gosta! A avó não sabe mas aquilo já não é A Herança.
- Não?
- Não vó, isso era dantes, agora já não há disso. Agora, as pessoas não recebem o que merecem ou mesmo o que é justo [mas não que a herança de facto garanta isso…]. Não. Agora as pessoas manipulam para receber, fazem Jogo Duplo.
- Ai é?
- É, vó…

(o que ela não sabe é que dantes também era assim, mas que nem sempre os olhos vêem e nem sempre os ouvidos ouvem o profundo-sentido-das-coisas.)

Doeu-me. Mas lá ficou com a ideia. Claro que eu sei que não há-de durar muito e que hoje à noite, por volta da hora do jantar, quando as vozes do ecrã anunciarem o Malato abençoado, a minha avó vai meter os ouvidos à escuta e dizer à minha mãe que

- lá vem A Herança!

E que hei-de eu fazer? Talvez esperar que esta forma “simples” de ver o mundo, esta forma que escuta para logo depois obliterar as partes-feias-da-existência, me seja passada de alguma forma em herança pelos mistérios duplos da hereditariedade.

quinta-feira, dezembro 11, 2008

Closer



There are some truths that we should not know
so there are some truths that we should not ask

so there are some truths that we should not tell.




(truths? what truths? as verdades
demasiado perto desfocam.)



quarta-feira, dezembro 10, 2008

Infinito além














(Luz, Dezembro 2008)


«O que mais há na terra, é paisagem.»*
E ainda bem.

(* José Saramago, 1980, Levantado do Chão, encandeado pelo Alentejo)


sexta-feira, dezembro 05, 2008

Irrefreável


Temos as coisas à nossa frente e, impulso irresistível, tratamos logo de as compor, de as arranjar, de as meter na ordem. Como se as coisas tivessem ordem e não fossem somente um punhado de contínuos, sem qualquer direcção ou sentido.

Vejamos: acontece-nos a maior coisa, a coisa mais injusta, a coisa mais incerta. E, zás, Não percebo, tem que haver aqui qualquer coisa, Isto tem que ter uma razão, uma explicação plausível. Então, pegamos nas coisas, arrumamos as coisas, damos números e nova ordem às coisas. Damos um sentido às coisas. Mas esquecemos que essa não é a ordem natural das coisas, que as coisas não têm fado, nem sequer um sentido.

Que são um punhado de coisas, só isso. Que a minha verdade não é mais verdade que a tua só porque a tua segue uma lógica e a minha vive em anarquia. Não. À verdade não interessa a lógica, a verdade não precisa de ser válida.


(Confrontei o meu pai, intimei a minha mãe. Exijo saber! – o que foi que aconteceu ao meu triciclo! O triciclo? Qual triciclo? Ah, O triciclo. Não sei. Não o deixámos lá na escada? Alguém o levou, nunca se soube quem. Quero saber a verdade! Foram vocês que o fizeram desaparecer! Nóoos? Não filha… Senti-me ridícula. Uma teoria tão boa, assim deitada pelo chão. Segundos de lucidez assim desperdiçados pela parte-desconhecida-das-coisas, Bolas.)


Mas o pior disto tudo ainda está para vir. E o pior é que, na procura desesperada de um sentido-para-a-existência, acabamos por perceber que as coisas-para-acontecerem também não precisam de ser verdade – que se dane a verdade! quem sabe a verdade? ninguém. e ainda assim tudo existe e é. – Não. As coisas-para-acontecerem basta-lhes chocarem umas com as outras.

terça-feira, dezembro 02, 2008

Doce.














(Lagameças, Novembro de 2008)


Amarg(ur)a-me pensar que

os frutos maduros
caiem de árvores já secas.

(mas quando caiem
caiem belos e iluminados.)


Outros, verdes ainda,
Fica por lhes florir o sabor



sexta-feira, novembro 28, 2008

Fractal




















(há dias em que as palavras saem feias. e depois batem e ressoam.)



quarta-feira, novembro 26, 2008

Mas temos sempre o canivete.



















Quando era mais pequena e ainda não tinha conhecimento das coisas, sentava-me no sofá já gasto e, naquela hora da fome, devorávamos o MacGyver munido de um canivete suíço e de uma cabecinha prodigiosa a escapar de qualquer entrapment. E devo dizer que lhe devo a ele o meu primeiro contacto (positivo) com a Física. Ali, naquele contexto natural, os conhecimentos “elementares” daquele herói faziam-me sonhar acerca daquela ciência ágil e lógica. E pensava: Quando for grande quero ser fisicista!

Depois, descobri que a Física é uma cambada de vectores, leis, movimentos, constantes, forças, velocidades, intensidades, energias, resistências, massas, pesos, cargas, e outros afins (acabei de despejar aqui o livro de Físico-Química do 10º ano). E que implica trabalho, muito! E, pronto – desilusão –, lá se foi o amor pela Física.

(espero que um dia destes, quando voltar à prática, volte a descobrir a paixão. parece-me a mim que as grandezas numéricas são muito mais certas que as particulares pessoas. pena é que não sejam mais fáceis de interpretar.)

sexta-feira, novembro 21, 2008

Nota do rodapé


a partir de hoje assinarei com outro nome.

para além de andar a pensar que the painter é realmente um "foleirismo" quase à moda do para inglês ler,
aparece-me assim a letras bem carregadas na fronte que, mais do que para pinturas, jeito jeito

é a minha propensão natural para quebras.

quinta-feira, novembro 20, 2008

Esgotamentos




















Os problemas, as pressões, as preocupações, o trabalho. A vida.
Sugam-nos até ao tutano.
E, depois largam-nos assim, esgotados.

quarta-feira, novembro 19, 2008

Unser täglich brot (Nosso pão quotidiano)


Andamos a produzir em massa
desprovidos já de sensações.

Presos na rotina da necessidade,
estendemos o braço,
erguemos a tesoura
e, zás, cortamos o pulso às coisas.





















































































Morrem os outros Mas nós
tornámo-nos já indiferentes à passagem dos corpos.

Morrem os outros. e porque razão?

razão? não. só para, no final, estendermos o braço,
e termos o mundo à mão.

(quando estamos tão imbuídos dela, como o ar que se respira, pergunto-me como poderemos nós quebrar esta rotina?)

terça-feira, novembro 18, 2008

Rewind after seeing.


[conteúdo potencialmente capaz de dar perspectivas de interpretação. Ou, Ignore before seeing the movie.]

Existe um pequeno ponto na linha do tempo em que, defrontados com duas opções, temos que escolher uma. Podemos adiar a decisão, mas esse ponto na linha mantém-se, e aguarda-nos até ao instante em que fazemos a escolha. Depois, as peças caiem, uma após a outra, numa sucessão contínua de acontecimentos. E não há retorno.

Pensar que tudo começa nas funções cerebrais de um homem que subitamente se torna inútil, e decide escrever as memoirs. E que, depois das voltas, não pode acabar com a supressão daquelas funções. Que há todo um processo que se inicia quando fazemos a borboleta bater as asas. E que não há volta depois do sopro.

Pensar que não somos maus nem bons. Que às vezes somos apenas cegos. Que ruminamos Mas tu não vês? És Linda! Mas, de facto, não vemos. Porque por dentro somos um caco.

Pensar que os inocentes morrem, não porque são inocentes e se descuidam, mas porque a vida é cheia de coincidências e de acasos sobre os quais, uma vez começado o jogo, perdemos o controlo. Que a morte está só à espera que queiramos viver. Que está só à espera que vivamos, só à espera que aconteçamos.

Que somos bichos de rotinas. Pensamos que temos o controlo e depois, zás. Caímos estatelados, trucidados pela traição. Porque somos cegos, sim cegos, e vemos o que queremos ver. Hiper-vemos até!, menos o que está mesmo à nossa frente.

Que pensamos que nos baseamos na racionalidade para tomar decisões e fazer escolhas, mas, não, afinal escolhemos somente ao sabor da necessidade. Do impulso para.

Que, no fundo, não somos homens, somos apenas idiotas.

terça-feira, novembro 11, 2008

Abrázame



















(Festival dos Abrazos, Santiago de Compostela, Agosto 2008)



Eu também se pudesse andava por aí aos abraços a toda a gente. E contornava os seus limites com força desmedida.

mas, depois,
há a incontornável questão
do espaço pessoal.

e mais que isso,
o terminante motivo
da higiene.

(anda por aí muita gente desconfortável com a fraqueza última dos homens: o afecto.)

quinta-feira, novembro 06, 2008

Grão a grão esvazia a galinha o papo


Andam por aí aqueles casos de famílias à beira de um ataque de nervos (entenda-se, falidas) que, ao que tudo indica, se tornaram vítimas das assumpções deste nosso sistema económico. No entanto, vai-se a ver e até recebem um Rendimento Social de Inserção (o famosinho RSI), mas vai-se a ver também e gastam-no é todo em pequenos-almoços entusiásticos nas pastelarias da Baixa. Ou da esquina ou lá onde for. Nem seria muito, é só o pequeno almoço, sou só eu, mais a minha mulher, e a minha miúda que até merece um bolito, e o meu miúdo, e a avó, que não vai ficar em casa, e a tia, o tio e o cão.

E, migalhinha aqui migalhinha ali, chega-se ao final do mês a virar os bolsos do avesso e a pregar a maior peta à assistente social que não é burra nenhuma mas que também não tem forma de não entrar no jogo. Mas adiante. O que se acaba por se perceber é que esta gente em quem se investe, esta gente que se queixa, que solicita e que se encosta, nunca vai retornar o investimento. E porquê? Porque lhes está nos genes, porque lhes corre nas veias. E o quê? A incapacidade de gestão, o jeito-para-estourar-dinheiro. Isto é, estamos perante casos crónicos de ineficiência administrativa.

Ora eu, depois de me darem estas dicas, descubro aqui um modelo de falência para o meu caso. É que vou dando o sorriso ao desbarato, esticando o labiozito aqui e ali, a pensar que vai dar para tudo. E, quando quero dar uma gargalhada bem dada, já não tenho energia para isso.

(sei que já o disse uma vez mas, de facto, não me conseguir rir de coisas-normais-para-rir faz-me sentir velha. o que agora percebi é que não deve ser isso. não! é, simplesmente, um caso crónico de ineficiência energética.)

quarta-feira, novembro 05, 2008

a letra B


Se o candidato democrata se chamasse Osama, de certeza que não tinha ganho as eleições. É que os americanos levam tudo demasiado à letra.

segunda-feira, novembro 03, 2008

Nuas


O que interessa não é como parecem vestidas.
O que interessa é o que são despidas.

(as políticas e as palavras, quero dizer. mas o resto também.)

(a algumas horas das eleições nos EUA, penso sobre isto. que o que eu gostava mesmo, depois dos votos serem manipulados, colocados, contados e divulgados, que o que eu gostava mesmo mesmo mesmo era de ver o novo presidente [a] nu.)

quarta-feira, outubro 29, 2008

Chapadas (I)


Andamos um ano, dois, abalados com o safanão da notícia. A cambalear e tentar manter o equilíbrio. A ver alguém subir as escadas e a aproximar-se cada vez mais do portão final. A saber que é uma ironia feroz por ser cada vez maior o esforço, mas ainda assim ter sempre que se subir, sabendo o que nos espera. A saber que é uma ironia feroz, ponto. Andamos assim um ano, dois. Olhamos sentimos sofremos. Fugimos. Voltamos. Tarde de mais. Chega o dia. Resta-nos despedir. Foi longo o caminho. Preparámo-nos. Tentámos preparar-nos, mas nunca estamos. Temos que nos despedir. Despedimo-nos. Da forma que sabemos, num modo que não controlamos. Temos que continuar, temos. Sofreu-se, sofre-se, vai-se sofrer. Acompanha-se o corpo. Choramos. Somos família, vivemos, prosseguimos. Há coisas que não mudam. Outras mudam mas têm que ser enfrentadas. Mesmo quando não queremos. Falamos sobre o ano vagaroso, o sofrimento lento, a preparação para a despedida. Falamos do amanhã. Digo, adeus, até logo. Temos que continuar, é assim a vida. Pois é, até amanhã.
Vejo-o afastar-se. Penso que amanhã, ou depois, na próxima vinda, falarei com ele sobre isto, ou sobre aquilo. Vem um carro, ele não vê. Pum, morre.

Andamos um ano a preparar-nos para a morte de alguém. E vem a vida e, num segundo, apanha-nos desprevenidos.

(Juro que não sei, não sei lidar com esta imprevisibilidade. É que não é se A gosta de B, se não gosta, se chateia, se rodopia. Não é se não comprei a bota, se perdi o filme, se não vi o jogo o João ou o carapuço, se me caiu do céu e eu não lutei, se não houve tempo, se não descansei, se não controlo isto, se não controlo aquilo. Se nem tudo é como quero, se falho, se não gostei de ouvir, se não sei do futuro, se nem sequer sei, se me assusto, se penso na minha vida, nestas com os planos e os sonhos todos. Não, não é nada disso. O que verdadeiramente me deprime é não saber Se no próximo instante continuo viva. O que incontornavelmente me prega com cada chapada é este imenso acaso Que até me pode manter viva mas roubar os que amo. De um dia para o outro. É isso que me deprime. O resto só acontece porque estou viva, e eles também.)

terça-feira, outubro 28, 2008

Pai Natal


Pensei na possibilidade. Não. Nem pensar. Não não não. O meu triciclo desapareceu, ora essa. Alguém o levou, um alguém distante de quem nunca saberei o nome. Um alguém com um menino que precisava mais dele do que eu. Foi isso. Claro que foi. Não poderia ter sido outra coisa. Pois não?...

Foi exactamente enquanto alongava os músculos naquele passeio em frente às Águas, enquanto olhava para a parede com estruturas metálicas para agrilhoar bicicletas, enquanto pensava que também eu podia ter uma bicicleta, guardada no prédio, mas que precisaria de algo para a prender, ou então podia deixá-la lá sem a prender, não não podia, porque poderiam levá-la, como daquela vez. Daquela vez, há uns 20 anos atrás, em que o meu triciclo desapareceu. Do vão das escadas onde foi deixado, já nem sei por meio de que ardiloso acordo. Foi exactamente aí, naquele instante, que se fez uma luz.

Não, espera lá!, o meu triciclo não foi levado. O meu triciclo não desapareceu. Nem teve mão de um alguém distante com boas intenções e esperança de um sorriso. Não. O meu triciclo, o meu veículo de criação de voltas perfeitamente circulares e intermináveis ao quintal, o meu lindo e adorado triciclo(!) foi mandado embora, afastado, numa obscura artimanha… pelos meus próprios pais. Como não percebi antes? Como não vi que tinha sido feito desaparecer, aniquilado, por ter três pernas e ser um comodismo. Por não ter duas e ser então propício a desequilíbrios e quedas e queixos ensanguentados. Por já não ser próprio para a etapa seguinte. Por ser um meio de empate e retenção na etapa anterior. Que se lixem as etapas! O meu triciclo foi mandado fora, posto num recanto frio e obscuro, e deixado assim triste à minha espera, simplesmente, por ter uma perna a mais! Só que eu, naquele dia, não vi isso. Pequenita, esperançosa de que a vida não leva as coisas que não lhe pertencem, que não leva antes do tempo, que não quebra os sonhos dos meninos, deixei-me convencer. E no dia seguinte, já confrontada com a ausência, o meu triciclo, posto naquele vão de prédio, tinha desaparecido. Só isso. Naquele dia eu acreditei no que eles me quiseram dizer, e no que eu quis ouvir. Só porque assim tinha sido imprevisto, impossível de se saber, impossível de se evitar. Porque, assim, era uma estória mais bonita.

(vou ser muito sincera. tenho 24 anos e - isto é uma desgraça de se dizer mas - por vezes, demasiadas vezes, parece que ainda acredito no Pai Natal. acordem-me para a vida por favor!)

quinta-feira, outubro 23, 2008

Descobertas
































Por vezes,
quando achamos que vamos dar,
acabamos por receber.



quarta-feira, outubro 22, 2008

O mundo depois da Susana


A Susana insiste. Aliás, não desiste da minha doutrinação. Apanha sorrateiramente os meus momentos de descanso e, zás, lê. O mundo depois de Copérnico. Senta-se no chão da cozinha e, enquanto eu termino o jantar (e também já depois de eu ter terminado…), percorre o texto, em voz alta...

- “…temos o sensualismo desenvolvido pelos filósofos franceses.” E esclarece, para minha educação, Sensualismo no sentido de sensorial.
- Não não, desculpa lá! sensual vem de senso! (depois de uns looooongos minutos a ouvir frases que não retenho, preciso de quebrar a monotonia)
- Bem!…, continua, “…filósofos franceses. Condillac, por exemplo.”
- Cadillac, a marca de carros??
- Deixas-me acabar? “O monstro de Frankenstein é a versão, em carne e osso, da psicologia sensualista. O despertar gradual para os sentidos (…) levará o monstro, em poucos meses, a ler os clássicos. Vemo-lo com as Vidas de Plutarco, o Paraíso Perdido de Milton…”
Interrompo:
- O Nilton? O nosso Nilton?! Escreveu um clássico??!
- (suspiro)…

(gosto tanto de arremessar às pessoas a minha ignorância. o que a sana não sabe é que, depois do desespero dela perante estes arremessos, ganho sempre uma desculpa para que ela desista das suas leituras enciclopédicas.)

(eu exagero. ela sabe que eu brinco. desespera pelas interrupções, sim, mas não desiste… [bolas!])


terça-feira, outubro 21, 2008

Paciências

            
Tudo certinho
Tudo direitinho
Tudo engomadinho
Tudo aprumadinho
Tudo arrumadinho
Tudo limpinho
Tudo engraxadinho
Tudo combinadinho
Tudo sorrisinho
Tudo inho inho inho.
Tudinho!

Zás! Vem um tipo
e desmancha tudo.

Será possível que tudo permaneça
certinho direitinho sorrisinho?

(fascina-me o controlo da raiva. dá-me sempre a secreta esperança de ver alguém rebentar pelas costuras.)


            

sexta-feira, outubro 17, 2008

Como animais (se me permites)


«Tem muitas virtudes como os olhos grandes e as longas pestanas, como as vacas.»

(Keshab Shrestha ao El País, acerca da candidata escolhida para kumari, isto é, reencarnação da deusa Durga. Este é um dos 32 critérios físicos que as candidatas devem possuir. Na lista figuram também ter peito de leão, coxas de veado, pescoço como uma concha, e voz suave e clara como a de um pato [suave? o pato? ok.]. Parece-me a mim, na minha profunda ignorância acerca destes assuntos, que estão à procura de uma Quimera.)

(fonte: Visão, n.º 233, semana de 16 a 22 Outubro, 2008)

He’ll figure?



I hope that one day Hilfiger out that with that hair and with that size of legs this was not the best picture to promote his expensive essentials things.


terça-feira, outubro 14, 2008

Sugar a vida até ao tutano




Combien de temps...
Combien de temps encore
Des années, des jours, des heures, combien ?
Quand j'y pense, mon coeur bat si fort...
Mon pays c'est la vie.
Combien de temps...
Combien ?

Je l'aime tant, le temps qui reste...
Je veux rire, courir, pleurer, parler,
Et voir, et croire
Et boire, danser,
Crier, manger, nager, bondir, désobéir
J'ai pas fini, j'ai pas fini
Voler, chanter, parti, repartir
Souffrir, aimer
Je l'aime tant le temps qui reste

Je ne sais plus où je suis né, ni quand
Je sais qu'il n'y a pas longtemps...
Et que mon pays c'est la vie
Je sais aussi que mon père disait :
Le temps c'est comme ton pain...
Gardes-en pour demain...

J'ai encore du pain
Encore du temps, mais combien ?
Je veux jouer encore...
Je veux rire des montagnes de rires,
Je veux pleurer des torrents de larmes,
Je veux boire des bateaux entiers de vin
De Bordeaux et d'Italie
Et danser, crier, voler, nager dans tous les océans
J'ai pas fini, j'ai pas fini
Je veux chanter
Je veux parler jusqu'à la fin de ma voix...
Je l'aime tant le temps qui reste...

Combien de temps...
Combien de temps encore ?
Des années, des jours, des heures, combien ?
Je veux des histoires, des voyages...
J'ai tant de gens à voir, tant d'images..
Des enfants, des femmes, des grands hommes,
Des petits hommes, des marrants, des tristes,
Des très intelligents et des cons,
C'est drôle, les cons ça repose,
C'est comme le feuillage au milieu des roses...

Combien de temps...
Combien de temps encore ?
Des années, des jours, des heures, combien ?
Je m'en fous mon amour...
Quand l'orchestre s'arrêtera, je danserai encore...
Quand les avions ne voleront plus, je volerai tout seul...
Quand le temps s'arrêtera..
Je t'aimerai encore
Je ne sais pas où, je ne sais pas comment...
Mais je t'aimerai encore...
D'accord ?

(Serge Reggiani, Le temps qui reste (récit); o poema surge recitado no final do filme Deux jours à tuer, de Jean Becker [França, 2007, 85`, M/12]. lancinante. tal como esta vida a que nos deixamos prender.)

sexta-feira, outubro 10, 2008

O outro lado do espelho

.
Exterior, obra vista da parte inferior.
























Exterior, obra vista da parte superior.
























Espreitar por dentro...
























Espera. Será?
























Sim, é.





















Espelho meu, espelho meu,
haverá mundo mais belo que o meu?


(cimento, baldes, blocos, ferro. um espelho cor-de-rosa.
fico a pensar no porquê.

tenho pena que, por mais bonita e colorida que seja a moldura, o mundo do outro lado do espelho seja apenas um reflexo da realidade.)


sexta-feira, outubro 03, 2008

E voávamos



















(às vezes, quando não tenho nada para fazer, e mesmo quando tenho, também me apetecia eu e tu deitadinhos, a pensar-em-nada, sobre um napron com que cobríamos a natureza-das-coisas.)

quarta-feira, outubro 01, 2008

Escapadinhas


A Baixa de Coimbra pela manhã, para quem passa no Mercado e apanha ocasionalmente o autocarro para a zona do Hospital, é uma amálgama de movimentos pendulares – casa-mercado, casa-trabalho, casa-hospital, para mais tarde ser mercado-casa, trabalho-casa, hospital-(com sorte)-casa.

Sim, a Baixa àquela hora da manhã não tem nada de novo. Só movimento e rotina. Ninguém olha para os cartazes que mudam, ou para as sombras que desaparecem. Ninguém repara se a rua foi limpa ou se a fonte brota água. (Reparam sim que a menina da frente tem a saia muito curta, e que a senhora do lado tem um amarelo aberrante. O resto não. Há o almoço para fazer e já são 9 horas!) Talvez por isso, naquela manhã notei curiosamente a convergência súbita que se originava na esquina dos Correios. Amotinara-se ali um bando de mulheres oriundas das manhãs do Mercado. Paradas junto à esquina, nos seus 60 anos enérgicos, olhavam escancaradamente para a caixa de electricidade suja e amolgada. Que se passa? Pensei eu, Será Um rato gordo com as tripas de fora? Um regurgitamento ainda fresco de vomitado? O amarelo da senhora do lado respingado de excrementos de pomba? Serão ainda, deixadas por um qualquer estudante bêbado, fezes abismais? Ou seria simplesmente, Um mendigo descoberto? Não. Nada disto. Sozinhas, no imenso fundo branco encharcado em cola de parede, ressaltavam pretas mas reluzentes as letras da palavra

Ex cur são. Uma Ex [pausa] cur [pausa] são! (e logo ao lado, Festa!)

Onde? Quando? querem saber! Lêem rapidamente o cartaz tentando escapar ao apelo da palavra provocante; discutem avidamente o conteúdo. E percebem ligeirinhas que, de facto, nem interessa. Fossem comunistas não fossem, era Uma excursão!

UMA Ex cur são! (e uma Festa!)

Fantástico. Confesso que me arrebata este fascínio dos 60 anos (perdoem-me a redução a esta faixa etária) pelas viagens atribuladas dentro de um autocarro. A malta da terra, as curvas apertadas, o Ai José! Ai Maria!, os sacos a abarrotar e a rebolar de sandes anafadas. O pão-de-ló para a sobremesa, ou a torta DanCake do mini-mercado da Josefa. O garrafão de vinho caseiro religiosamente amparado entre os tornozelos cheiinhos. A toalha rendilhada e bem dobrada para ser deitada na mesa de piquenique. Os peitos farfalhudos de pêlos sobre os quais reluz juntamente com o suor um grossito fio de ouro. As boinas impecavelmente direitas. A saia bem bonita pelo joelho, a camisa de domingo aos folhos, Ou de seda. O tamanco moderno, Ou o sapatinho que comprei ali nas Modas da Rita. Os brincos pendentes que rasgam a orelha. O cabelo a cheirar a laca, com mais caracóis do que as couves que ficaram, naquele dia, daquela vez, a crescer na horta do mercado (a época faz mudar as aparências e as coisas de sítio, mas não lhes muda a Natureza).

Fascina-me. Esta geração, agora já terceirinha, que não se volta a repetir. Esta geração que define que os primeiros 100 anos se passem a trabalhar para o futuro, mas que permite que, a partir dos 50, se acrescente a vontade da escapadinha, dada ocasionalmente, em dias parecidos com o domingo. Fascina-me.

É que neste convívio salubre – traduzido no êxtase da Excursão – manifesta-se mais uma etapa da vida. Havia a idade dos porquês, a idade do armário, e a idade de apanhar os caracóis das couves (a época faz mudar os nomes das coisas e as manifestações, mas não lhes muda a Natureza). Agora, algures depois dos Renault 5 e das carrinhas Peugeot 504 Break, há também a idade do autocarro (leia-se, da Excursão! e da festa!).

sexta-feira, setembro 26, 2008

Elefantes

          
Eu se estivesse na sala de um exame
ou a percorrer os corredores da minha escola
ou a passar na rua

E viesse um sujeito direito a mim
de arma empunhada na mão

morria.

Mas morria antes. Antes que a bala fosse disparada, antes que a bala me atingisse.
Morria da antecipação, morria do sentimento de transgressão

porque Master Wayne I told you so
porque It's the good advice that you just can't take
porque devia ter ficado em casa
(à espera que o prédio desabasse
ou que a bilha de gás explodisse)
aninhadinha na minha cama
à espera.

À espera de morrer depois.

(o recorte de Jornal que a Susana me deu dizia que o rapazinho de 22 anos tinha bilhetes no quarto onde exprimia o seu ódio pelas «pessoas e pela raça humana». Compreendo. Podemos escapar de todos os que nos rodeiam, trancarmo-nos no nosso quarto e ficar na solidão. Mas, ainda que tentando ignorar, estamos ininterruptamente presentes para conseguirmos escapar de nós mesmos.)
       
    
         

Please let me please you.


Se, por um lado, vivemos numa sociedade demasiado egocêntrica, por outro, temos a mania de andar a lamber botas para subir de degrau. Mas pior que ter que as lamber, é suplicar para lhes passar a língua encima. Porque só assim, pensamos nós, o outro vai reparar que há qualquer coisa a fazer comichão lá em baixo. E só assim, pensamos in-cre-du-la-men-te nós, perante o desconforto da dádiva, iremos receber.

(Não sei, não me parece que isto seja tão claro visto de dentro, ou de baixo, do sítio onde se cheiram as botas, mas sinto o meu estômago (es)pasmado quando presencio este dar-com-ela-fisgada – torna-se indecente.

sim, indecente. este Please subtil. este Let me please you ardiloso.)

E o pior é que quem se oferece, ainda que tenha a consciência do desconforto que gera, da obrigação que provoca, não percebe o reverso da medalha. É que Ouvir peganhento o elogio – incómodo, A risadinha amarela – insuportável, A gargalhadinha fininha a rebentar – despropositada – e sentir Lambeeer, com aquela língua enrolada de trejeitos de um british accent, as botas já insuportavelmente lambidas por tantos outros, gera um desdém imperturbável por parte de quem se sente obrigado a gratificar. Porque o outro iça mas sem vontade – Oh você aí, ice lá este que já me chateia. Porque o outro compra sem gostar.

E acabamos por nós próprios definir como queremos subir os degraus – içados por uma corda podre. E acabamos por, nós próprios, nos colocar no lugar que merecemos – o lugar da fruta incipiente à espera da primeira oportunidade para ser deitada fora.

quinta-feira, setembro 25, 2008

Sinais


O semáforo ficou verde, e o senhor parou. Estancou o carro, de mãos no volante, e esperou. Os de trás apitaram, com a razão, pensaram eles, Olha-me este parolo a parar no verde!

mas,

parolos são eles que não percebem que este homem pára nos verdes e avança nos vermelhos. Parolos são eles que não sabem e, pior que isso, não querem saber o porquê do senhor parar nos verdes e avançar nos vermelhos. Parolos são eles que fazem as coisas pela ordem, e seguem as cores quando atam os sapatos e abotoam as calças, quando fazem ofícios ou orçamentos de estado, quando discutem leis e apregoam morais. No fundo, quando seguem as cores para julgar o outro ou para barrar manteiga na torrada da manhã.

Pa-ro-los. Porque se enfileiram atrás das regras, e as seguem num jogo cego de Rei Manda. Porque as seguem mesmo quando já nem sabem quem manda. Porque perderam o sentido das coisas. Porque nem questionam o sentido das coisas. (Que mania de avançar nos verdes e parar nos vermelhos.)

por isso,

fascinam-me estas pessoas que param nos verdes. Porque certamente avançam nos vermelhos e geram o caos. Ou esperam o azul sem estranhar a demora [tudo é uma imensa descoberta] e, depois, geram o caos.
Que vêem o mundo ao contrário, de pernas para o ar. Ou sem ser ao contrário, que o vêem do avesso. Ou sem ser do avesso, como uma infinidade de peças de puzzle totipotentes.
Que esticam as regras, e as encolhem e amarfanham depois, só para que possam caber no frasquinho que lhes reservaram. Ou que não reservaram e que arranjaram ali. Agora. O frasquinho pelo qual passam e ao qual deitam a língua de fora só pelo gozo de as ver contorcidas e miseráveis, desesperadas.

por isso,

fascinam-me. Quando pegam nas rotinas e as olham de baixo a cima, e então percebem que não têm sentido ou que o seu sentido seria maior se fossem sanitor ou nitorsa ou ainda tarnios.

(mas, depois desta consciência, amarfanham-se e preenchem os espacinhos ocos e até os não-ocos da minha cabeça os porquês de também eu avançar nos verdes e parar nos vermelhos. Afinal, parola sou eu.)

quinta-feira, setembro 18, 2008

Urgência


[conteúdo potencialmente capaz de provocar reacções nas vísceras.]


Nas minhas últimas incursões à Urgência há coisas que me ficam. Coisas. Coisas que nem são o sumo da ida à Urgência. Não são. Porque o que me fica destas incursões não é a procura do alívio dos sintomas, ou o próprio alívio dos sintomas; não é a segurança de ter alguém sábio a aliviar-me os sintomas, a procurar-me as origens, a curar-me os males. Também não é o facto de encontrar auxiliares exaustas e carrancudas ou médicos inatingíveis. Não é o cheiro e as peles amarelas. Não é o desespero humano nem os limites que se ultrapassam. Nem é o cansaço da espera nem sequer o cansaço da luta.

O que me fica das Urgências são os momentos em que eu entro triunfante

pela sala de espera adentro
cheia de pessoas a olhar para as moscas. Isso e a olhar umas para as outras, e a ouvir o que umas dizem para as outras
porque estão cansadas, cansadas daquela espera. Isso e cansadas da vida, e então reparam e olham escancaradamente o momento

em que eu (re)entro triunfante nessa sala, num esforço de equilíbrio e jeito para não perturbar o líquido amarelo no copo de plástico branco a baloiçar a baloiçar a baloiçar.

[as minhas faces vão Boom]

Isso, e o momento em que a médica dócil e simpática sai do gabinete e entra

pela sala de espera adentro
cheia de pessoas a olhar para as moscas. Isso e a olhar umas para as outras, e a ouvir o que umas dizem para as outras
porque estão cansadas, cansadas daquela espera. Isso e cansadas da vida, e então reparam e ouvem escancaradamente o momento

em que a médica se dirige a mim com um copo de plástico branco e diz Depois faz para aqui está bem?

[as minhas faces vão Boom]

(confesso que não percebo porque é que as minhas faces vão Boom. receber o copo, utilizar o copo, retornar com o copo no contexto de uma Urgência é perfeitamente normal.)

Isso e também a senhora do guichet no piso das Colheitas que me fala do Procedimento. Já sabe o procedimento? Não. Lava-se, deixa correr um pouquinho e depois faz para aqui [aponta para os frasquinhos apropriados], sim? (Como é?) Lavo-me? Sim, no bidé. A casa de banho está preparada para isso.

(bidé. na casa de banho de um hospital público. ora aqui está uma coisa que eu confesso que não vou perceber.)

P.S.: Mas eu não me queixo. Nãaaao. Eu simplesmente relembro. E, depois de relembrado e remoído, penso com as faces enrubescidas que o que me fica nem sequer é o sumo da ida à Urgência. Ou o próprio palco da Urgência. Que não é o facto de encontrar auxiliares exaustas mas dedicadas ou médicos reticentes com o peso da responsabilidade. Que nem são as histórias que se vêem, nem as lições simples que nos estalam na face. Que não é a humanidade amachucada por um cansaço de espera, e por um cansaço de luta.

Que o que me fica como urgente para relembrar é tão-somente o que faz as minhas faces ir Boom, e o meu ego(centrismo) atadinho quando expõe a parte ridícula da intimidade.
         
     
         

quarta-feira, setembro 17, 2008

sim, indiferença.

    
Quando o meu corpo apodrecer e eu for morta
Continuará o jardim, o céu e o mar
E como hoje igualmente hão de bailar
As quatro estações à minha porta.

Outros em Abril passarão no pomar
Em que eu tantas vezes passei
Haverá longos poentes sobre o mar
Outros amarão as coisas que eu amei.

Será o mesmo brilho, a mesma festa,
Será o mesmo jardim à minha porta,
E os cabelos doirados da floresta,
Como se eu não estivesse morta.


(custa-me esta indiferença. porque não mede o tamanho das nossas sensações, dos nossos afectos, das nossas dependências. não mede o tamanho dos medos, das ambições - do desejo de termos sempre mais que um momento. sim, custa-me. porque não mede os sonhos, não mede os planos, e o quanto nos vemos incompletos para completar. porque não mede o amor dos outros e as consequências da privação. porque não mede a justiça nem a injustiça. e procede absurda e inconsciente. ao acaso. e não repara na ironia.

indiferente.

e, por isso, custa-me. porque não mede o tamanho do apego que ganhamos à vida.)



[poema: Sophia de Mello B. Andresen]
   
      

terça-feira, setembro 09, 2008

Cube

Combinações. 24 x 24. Imensos os cubinhos que se movem numa ordem rígida e perfeita. Até que tudo volte ao início. À perfeição*. Para que se possa desmoronar em seguida e repetir o ciclo.

(o desespero humano de não conseguir perceber o que não tem um sentido.)

Vou para casa. Não sei quando foi o início, nem se quer se algum dia tive o início, mas sinto os cubinhos na minha cabeça, a mover a mover a mover. Seguem movimentos ritmados; vão-se dispondo e caminhando no sentido da ideia primeira, única, perfeita. As palavras encaixam-se, constroem-se, combinam-se. E atingem: Tenho que escrever, Já.
Mas o instante passou. Vagarosos e impassíveis, retomam o ciclo. Vejo as ideias desmontarem-se (desmoronarem-se) a pouco e pouco. Esqueço as palavras. Já não sei como voltar.

Ideias. Palavras. Como cubos. Montam-se, atingem o momento em que a eclosão madura do fruto é possível, e voltam a desmontar-se.

(o desespero de se ter o momento na mão e de o deixar escapar, irreversivelmente.)


*A “perfeição” é, em si mesma, um conceito inatingível. Mas, ainda que sabendo as nossas limitações, procuramos sempre a proximidade do Horizonte.

sexta-feira, setembro 05, 2008

Colheitas

   
Tenho o frigorífico cheio de tomates. No meu prato é possível reparar nos resquícios de conduto afogados no imenso desabamento vermelho. Proteínas e: tomate cru, tomate cozido, tomate recheado, refogado de tomate, tomate au chef, tomate au garçon, doce de tomate, etc. Tomate au hasard. (eu até fazia isto tudo, se passasse o dia entregue à questão dos tomates. como não passo, segue o tomate cru.)

A mãe natureza é de facto generosa. O problema é que antes do tomate veio a alface. E toca de passar uma época a comer alface. Até se gastar o sabor e ser já tudo uma amálgama de folhas verdes em pedaços. O problema também é que antes da alface veio o alho francês. E antes do tal veio o outro, e assim por diante.

E agora, quando passar o tempo do tomate, virá o tempo da abóbora, depois da couve portuguesa, o tempo dos grelos de couve, o tempo dos nabos, dos grelos de nabo, dos grelos de couve, do feijão verde.

E em todas estas épocas eu me imagino sentada à mesa, numa figura triste e desconsolada, a mastigar interminavelmente um poço de legumes de época.

E confesso que, aparte a sua generosidade, me saturam estes desequilíbrios da mãe natureza.

(a Susana diz que não são desequilíbrios: que a mãe natureza é que não vive à nossa custa. Que faz é o que lhe dá jeito, a ela. Hm. Prooooonto, reformuuulo. Confesso que me satura esta indiferença da mãe natureza.)
 
       
 

quinta-feira, setembro 04, 2008

Solidão (II)


I
A velha olhou o Horizonte. Em frente, as luzes iam-se acendendo e as famílias reuniam-se em torno de conversas animadas. Fechou a janela. Os estores sujos afiguraram-se mais pretos. Sentou-se na cama, fechou os olhos e lembrou. Outros tempos, dizia ela, Outros tempos.

Percorreu o caminho comprido. Há quatro dias que se encerrara em casa para trabalhar. E soube-lhe bem. Estava para continuar. Mas os amigos insistiram. Tens que sair, vai fazer-te bem. Vamos àquele bar, anda. Foi. Quando chegou tinha o lugar à espera. As conversas, os festejos, os copos. Subitamente, Tanta gente ali. Quem são estas pessoas. Tanto barulho. Só.

Tinha 27 anos. O corpo inerte, em coma há 18 anos, não parecia fazer conta dos cuidados. Todos os dias enfermeiros, médicos e auxiliares passavam por aquele quarto. Todos os dias os pais entravam e falavam com ela. Pegavam-lhe na mão e sonhavam. Mas o mundo mudara à sua volta. E, inconsciente dessa mudança, inconsciente já de si mesma, permaneceu a menina que antes fora.


II
Há tantas pessoas sozinhas.
Se as pessoas sozinhas se juntassem todas
deixava de haver pessoas
sozinhas.

(deixava?)

(à noite no escuro do meu quarto
oiço o meu coração no silêncio bater batER BATER e penso
Se eu morresse agora
morria sozinha Sem ninguém
saber.

e dói-me cá dentro a Solidão.)

quarta-feira, setembro 03, 2008

Solidão (I)

Sorriu.
apertou-me a mão e disse
Está tudo bem.

senti-lhe o aperto do peito.
Está tudo bem.


[“(…) Dão-se os lábios, dão-se os braços dão-se os olhos, dão-se os dedos, bocetas de mil segredos dão-se em pasmados compassos; dão-se as noites, e dão-se os dias, dão-se aflitivas esmolas, abrem-se e dão-se as corollas breves das carnes macias; dão-se os nervos, dá-se a vida, dá-se o sangue gota a gota, como uma braçada rota
dá-se tudo e nada fica.

Mas este íntimo secreto que no silêncio concreto, este oferecer-se de dentro num esgotamento completo, este ser-se sem disfarce, virgem de mal e de bem, este dar-se, este entregar-se, descobrir-se, e desflorar-se,
é nosso de mais ninguém.”

António Gedeão, Poema do Homem Só, 27 Dezembro 1956, publicado em Teatro do Mundo, 1958.]

segunda-feira, setembro 01, 2008

Baratas

Económicas, chama-lhes a Susana.
E são: borrifam-se abundantemente com o Mata-Spray e, ainda assim,
duram, duram, duram, duram...

(eu sei que devia meter o pé encima e pronto.
mas a sensação do meu sapatinho naquelas costas arqueadas, naquele corpo cheio de patas, naquela minúscula cabeça com antenas, naquela criatura crocante e inteligente,
também dura, dura, dura, dura...)

quinta-feira, agosto 14, 2008

Karoshi (I)


(em férias, pelo menos da esfera bloguista, numa tentativa de evitar o Karoshi.)

quinta-feira, julho 24, 2008

Como escorreguei num pacote de açúcar


Sei de cor que os pacotes de açúcar têm entre 7 a 9 gramas de açúcar. Sei também que, no ritual diário, são abertos e esvaziados para adocicar o que é amargo. Que os ditos pacotes ficam então mais leves, e passam a esvoaçar, levados nos ventos da Baixa. Que se deixam cair ao chão, minúsculos e espalmados. Que se deixam cair ao chão rodeados de montras apelativas. Que ninguém olha para o chão quando as montras mostram peças em saldos. Que é preciso o acaso mas que, por vezes, tendo muitos e muitos metros quadrados, metemos o pé onde não devemos.

Penso que as pessoas também vêm por vezes como pacotes. Anunciam 7 a 9 gramas de açúcar no interior, o suficiente para adocicarem o amargo do resto, e quando se vai a ver estão ocas. Tão ocas, que entre os aproximadamente 6.684.100.000 humanos que existem, acabamos a pensar Bolas, tinha logo que escorregar neste! Mas, depois, podemos sempre pensar que se sobrevivemos não é tão mau quanto isso.
 
Aliás, entre o instante de meter o pé, ter a sensação de algo escorregadio e olhar para o chão, confesso que receei. Mas depois, Ufa, pensei, Ao menos não pisei um poio.

Evolução?

Direitos humanos. Tenho um saco de questões acerca destes direitos: de onde vêm? onde surgem? a quem se aplicam? devemos impô-los como verdade absoluta? são o estado último das coisas? é para onde evoluímos – para uma liberdade individual?

Disseram-me que não é uma questão de impor. Que forçar as coisas não funciona – as coisas revoltam-se e acabam por seguir outras direcções, direcções que só empatam e atrasam o caminho último. Que é preciso respeitar os tempos de evolução de cada nação. Que todos caminhamos para lá. Que acabamos por lá chegar. Que os direitos humanos, os direitos atribuídos aos seres humanos e que lhes permitem o livre arbítrio, que a emergência desses direitos irá acontecer mais cedo ou mais tarde em todas as nações.

(deve ser como a ideia de deus. o nosso cérebro caminha em determinadas direcções e não há como fugir-lhe. estranha liberdade esta, a liberdade programada.)

Penso nisto. Em como as pessoas começam. E se tornam agrestes. Egoístas. Em como as pessoas acabam por apaziguar ao longo da vida. Em como as pessoas têm diferentes tempos para achar esta paz e esse respeito pelo próximo. Em como uns lá chegam mais cedo. Em como outros só quando o fim de tudo se aproxima a galope. Em como outros já vão tarde, e outros nem fazem planos de chegar.

Sim, disseram-me que não devemos impor, que os oprimidos serão livres um dia, quando as nações, uma por uma evoluírem o suficiente. Quando as outras nações chegarem ao ponto em que nós, ocidentais, nos encontramos. Que elas lá chegarão nesse dia.

(calculo que esse dia seja numa medida de tempo indefinido, claro. afinal, também atribuímos o direito às diferenças individuais – onde deve estar incluída as diferenças na velocidade de evolução.)

Pena é que, enquanto uns chegam e outros não a esta meta que concebemos, muitos inocentes morram pelo meio sem sentir no peito o que é isso de ter direito à liberdade.

(P.S.: eu muito sinceramente ainda não encontrei resposta finita para as perguntas do início. mas o Karl Popper escreveu uma vez que, para permitir a tolerância, tínhamos que ser intolerantes numa só coisa: para com a intolerância.)

quarta-feira, julho 09, 2008

"Fazer coisas com palavras."


Toda a gente devia aprender a fazer coisas com palavras. Por exemplo, transformá-las em acções.

terça-feira, julho 08, 2008

Way out or way in?







































































(o conhecimento das pessoas também é uma progressão.
primeiro é-se o que se parece
depois passa a parecer-se o que se é.)





24

Se pensar de dentro, de dentro das coisas, das coisas como eu Parece-me que a minha vida se passou num dia.

Não sei, mas da infância tenho algumas lembranças semelhantes ao raiar de uma luz, ao nascer dos sonhos.

Da adolescência um sol a pique de se ficar encandeado e pensar que se vê tudo E afinal não se vê é nada.

Da adultez nem tenho memórias, que isto o tempo corre e exige E acabamos por, nas mudanças, perder pedaços que não voltamos a recuperar.

De agora (será velhice?) é um cansaço das coisas, Querer o tempo e saber que se extingue e que não volta.

A noite vai escura e parece-me que não há a luz no fundo do túnel, que ainda faltam umas 7 horas para o novo dia, e eu nem sei se depois de dormir volto a acordar.

Couraças


Na descida, andei a pisar ouro. Não sabia que havia ouro na Couraça. Erro meu, porque todos os dias ao final da tarde, quando o sol se vai deitando de mansinho, as pedras cinzentas encerram-se e metem as couraças de ouro para dormir.

(é incrível como as coisas mais pequeninas da vida nos despertam, por vezes, o maior sorriso do dia.)

quinta-feira, julho 03, 2008

Berço






















(Bairro da Graça, Lisboa, Natal 2006)


Lisboa dos lisboetas
Lisboa dos deslocados

Lisboa dos portugueses
Lisboa dos emigrantes

Lisboa dos residentes
Lisboa dos turistas

Lisboa dos bairristas
Lisboa dos betinhos

Lisboa dos fadistas
Lisboa dos rappers

Lisboa dos pastéis
Lisboa da fast food

Lisboa das ruas estreitas
Lisboa das ruas largas

Lisboa dos olhares curiosos
Lisboa dos indiferentes

Lisboa dos que vêm de fora
Lisboa dos que vão de dentro.

(pergunto-me como podemos sentir falta de algo
que não chegámos a conhecer?)

terça-feira, julho 01, 2008

Escape


Decorei-te a frase de intervenção, a aparição súbita. Decorei-te o cabelo ligeiramente encaracolado, os fios brancos de quando a quando, os dentes finos e os olhos arregalados. Decorei-te os gritos e a voz arrancada de um fundo sem fundo. Decorei-te esse desespero de querer ser o que não está em nós. De fugir daquilo que nos está no sangue. Encontrámo-nos no meio de uma sucessão desordenada de instantes, e falámos como se nos conhecêssemos desde sempre. Trocámos ideias, ultrapassámos os limites. E depois, saciados da quebra da rotina, seguimos com a nossa vida.
Talvez todos queiramos encontrar um louco. Alguém que nos arranque do que vivemos todos os dias. Que nos acorde. Por instantes. Para quando formos para o café termos uma história para contar. O que não queremos depois é ter que viver com ele. É um brinquedo de meia-hora que só queremos se, quando começar a chatear, o pudermos pôr de lado.
(aparte de ser rebelde, acho que uma parte de mim – a que não se preocupa com as aparências, a que compensa essa parte – uma parte de mim sempre quis ser louca. mas essas coisas não se forçam. já vêm nos genes. e se tentarmos ser loucos, acabamos por nos tornar ridículos.)

sexta-feira, junho 27, 2008

Serviço Público.

 
Marco o número.
 
Para tal e tal marque isto. 
Para tal e outro marque aquilo. 
Marco isto. 
Se quer tal e coiso marque x. 
Se quer tal e aqueloutro marque y. 
Marco y. Para condições marque bu. 
Para confirmar marque pu. 
Marco pu. 
De certeza que quer tal e aqueloutro?
Marque s para confirmar. 
Marque t para cancelar. 
Marco s. 
Lamentamos. Só pode mudar no dia que não é hoje.
   
  
      

quarta-feira, junho 25, 2008

“Achas que sou maluquinha por gostar do cheiro dos teus pés?”


acho. mas ser-se louco é tão bonito.

(tenho tal admiração por esta mulher, que calculo quer ela me acharia ridícula se soubesse que o chego a confessar.)

Acerca dos Episódios Depressivos (Ou um telegrama aqui para dentro)


"Eu disse que ia ao fundo buscar-te. Não disse que ficava lá a fazer-te companhia.”

(Inferno, Joaquim Leitão, 1999)

Das Mulheres

I – Achegas

“Deviam vestir-se de branco, como os outros electrodomésticos.”

(Bernie Ecclestone, patrão da Fórmula 1, acerca das mulheres e da sua potencial participação como pilotas de automóvel.)

II – Truque

“Eu quando me excito ao ver uma mulher, basta-me imaginar o interior do corpo dela.”

(ilustre desconhecido)

Bexiguinha e o Point-less da existência das coisas.

Pedra pedra pedra pedra pedra pedra pedra pedra pedra pedra pedra pedra pedra pedra pedra pedra pedra pedra pedra pedra pedra pedra pedra pedra pedra pedra pedra pedra.

Saiem-me as tripas pelos olhos. Morro que não aguento. Que arda e sofra, Odeio-o Espero que morra.

(Levar as coisas ao extremo é como repetir a mesma palavra vezes sem conta até que soe estranha e nova e desconhecida. As coisas assim tornam-se patéticas e vãs, inúteis. É por isso que as devíamos pegar pela mão, ou mesmo agarrá-las pelo braço, e levá-las até esse ponto longínquo – consumá-las num grito despropositado. Nem que seja apenas para percebermos depois que onde queremos ficar é lá atrás. Ou se calhar até um pouco mais à frente…)

segunda-feira, junho 23, 2008

Sem volta.


















That's not the beginning of the end
That's the return to yourself
The return to innocence
(The Return to Innocence, Enigma)

(Eu também gostava de voltar a mim mesma
e a essa inocência
de ser só eu, sem o resto.
Sem tudo o que se vai acoplando, E a estripa.
          
Mas os inocentes são mortos cedo. Porque são imaculados.
É o preço de não sofrerem a consciência do mundo. É assim a inocência – tem um tempo
e, depois,
morre. De uma forma, ou de outra.)