quarta-feira, outubro 29, 2008

Chapadas (I)


Andamos um ano, dois, abalados com o safanão da notícia. A cambalear e tentar manter o equilíbrio. A ver alguém subir as escadas e a aproximar-se cada vez mais do portão final. A saber que é uma ironia feroz por ser cada vez maior o esforço, mas ainda assim ter sempre que se subir, sabendo o que nos espera. A saber que é uma ironia feroz, ponto. Andamos assim um ano, dois. Olhamos sentimos sofremos. Fugimos. Voltamos. Tarde de mais. Chega o dia. Resta-nos despedir. Foi longo o caminho. Preparámo-nos. Tentámos preparar-nos, mas nunca estamos. Temos que nos despedir. Despedimo-nos. Da forma que sabemos, num modo que não controlamos. Temos que continuar, temos. Sofreu-se, sofre-se, vai-se sofrer. Acompanha-se o corpo. Choramos. Somos família, vivemos, prosseguimos. Há coisas que não mudam. Outras mudam mas têm que ser enfrentadas. Mesmo quando não queremos. Falamos sobre o ano vagaroso, o sofrimento lento, a preparação para a despedida. Falamos do amanhã. Digo, adeus, até logo. Temos que continuar, é assim a vida. Pois é, até amanhã.
Vejo-o afastar-se. Penso que amanhã, ou depois, na próxima vinda, falarei com ele sobre isto, ou sobre aquilo. Vem um carro, ele não vê. Pum, morre.

Andamos um ano a preparar-nos para a morte de alguém. E vem a vida e, num segundo, apanha-nos desprevenidos.

(Juro que não sei, não sei lidar com esta imprevisibilidade. É que não é se A gosta de B, se não gosta, se chateia, se rodopia. Não é se não comprei a bota, se perdi o filme, se não vi o jogo o João ou o carapuço, se me caiu do céu e eu não lutei, se não houve tempo, se não descansei, se não controlo isto, se não controlo aquilo. Se nem tudo é como quero, se falho, se não gostei de ouvir, se não sei do futuro, se nem sequer sei, se me assusto, se penso na minha vida, nestas com os planos e os sonhos todos. Não, não é nada disso. O que verdadeiramente me deprime é não saber Se no próximo instante continuo viva. O que incontornavelmente me prega com cada chapada é este imenso acaso Que até me pode manter viva mas roubar os que amo. De um dia para o outro. É isso que me deprime. O resto só acontece porque estou viva, e eles também.)

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