quarta-feira, setembro 29, 2010

desaire


matou-me o menino. ontem,
no meio da calçada. matou-me o menino da pistola em punho. ergueu a mira e posicionou. depois, com o olhar franzido e o sorriso maroto, puxou do gatilho e fez

Pum!

imagino a pistola carregada. a bala mortífera. não teria tempo de pensar, por certo. mas
era só cola, por sorte. era apenas uma pistola de cola.

(passam os filmes na TV. os heróis de arma em punho, os cowboys. não, os assassinos natos, os terroristas; vivem os vilões no jogo. a tarefa é matar e vencer. há o prazer expresso no herói. há os pontos amealhados. o próximo nível.há também o terror dos que são mortos. há o medo, o sofrimento. nas faces estende-se o esgar infeliz da sensação que percorre o corpo. o sangue esvai-se. há gritos. e os meninos, vêem? porque não haviam de ver?

juro que não percebo, será inato? porque é que preferimos o gozo do poder à compaixão pelo sofrimento.)


segunda-feira, setembro 27, 2010

a guerra das rosas*




não sei se todas as letras são vidas. mas muitas vidas, amores, há
que são esta letra.


(* Camané, Do amor e dos dias, 2010)


quinta-feira, setembro 23, 2010

you're asking me how far will my love go. i don't know, i don't know.






"... You're asking me will my love grow,
I don't know, I don't know."


mas
"... Stick around, and it may show. "



quarta-feira, setembro 22, 2010

negligência


porque vale a pena dar a conhecer repetir divulgar espalhar gritar. até que a garganta doa. até que os olhos chorem. até que alguma coisa mude.


sexta-feira, setembro 17, 2010

instintos (restruturados)

ela entrou, balanceou entre as varas de suporte, como macaco de galho em galho, e deixou-se a rodopiar no meio do autocarro. tinha a pele morena e os beiços inchados. calças justas de ganga com t-shirt de cor incerta. tinha também o cabelo enrolado, longo, a terminar num caracol escuro. mas o que nela cativou foram os rugidos, os balbúcios tenebrosos com que falava ao telemóvel. vinha numa conversa crua que alongava em silêncio e quebrava logo de seguida com violência, chuviscando as pingas da fala e mostrando os dentes roídos decerto pelos açúcares da gula.

era um cenário de suster a respiração. era vê-la mandar bufos de impaciência, levando as mãos à testa pequenina, ao crânio minúsculo. era vê-la mover amplamente os cotovelos como se pudesse afastar os demónios que a atormentariam. era vê-la. e logo se nos estarrecia a visão.

depois, já certo consumida de maldizer a vida e quem lhe falava do outro lado, deixou-se cair no banco. entrevi-lhe o desespero. mas ignorei.
toca para parar o autocarro. pára. sai uma mãe com a filha pequena pela mão. sai ela também.

observo ainda. os olhos prendem-se-lhe no quadro que mãe e filha pintam ao andar. na mãe e na filha. na filha. então, curiosa, sem desfitar, noto-lhe o olhar. deixo-me ficar nele. os olhos pestanudos contemplam enternecidos a cachopa. e alonga-se nos beiços inchados um dos sorrisos mais benevolentes que já vi.

eu? fujo depressa. enfio-me num buraco cá dentro. e vejo-me a diminuir a diminuir a diminuir. até ficar mirrada que nem uma criatura oca.


(tenho este terrível hábito de observar demoradamente as pessoas. mas, ainda assim, a contínua insatisfação de não lhes conseguir descobrir os fundos.)

finito infinito

         
passo na Baixa. na esquina da Câmara, um velho olha o futuro, apoiando na bengala gasta a mão encarquilhada. tem o olhar preso. a postura imóvel. olho para ele enquanto avanço. penso: apetecia-me perguntar-lhe o que vê. para o que dirige o olhar tão atentamente. se vale uma vida. queria tanto saber.

mas depois desiludia-me, com toda a certeza.

(prefiro tecer o sonho, colar-lhe as pontas. construí-lo em castelo e subir nele, percorrendo-o encantada. ficar lá. do que depois ter que o partir contra a realidade.)
       
       
    

quarta-feira, setembro 15, 2010

Causas para a desgraça dos povos (IV)

os meninos na praia à noite. uma tenda montada. as dunas minúsculas, ondulantes, fazendo desenhos sombrios. os caracóis loiros, as perninhas lançadas no chão, a mão rechonchuda e rosa que se estende ao alto. lança a areia num fiozinho que escoooorre. e cai cai cai, como mil estrelinhas doiradas transformadas em prata pela luz da lua. tudo isto encoberto, sob o olhar vigilante de um pai que, de dentro da tenda, observa. deitado sobre a bossa estomacal, afasta os olhos da criança à medida que se aproximam os vultos curvilíneos. nas covas oculares, revolvem-se-lhe os olhos sempre que passam as moças. e um olhar negro, voraz, lança-lhes no caminho a baba que se desprende dos lassos beiços. "queres companhia?", ataca.
remexe ainda na areia, o menino, lança-a ao alto, enquanto deita o olho à cena. enquanto, sem se aperceber, a vai guardando na memória.

(tanta inocência que se estreita, e que desaparece, sufocada pelas mentes instintivas e insatisfeitas destes pais.)

segunda-feira, setembro 13, 2010

'we used to wait'




















humor negro






















(Sabugal, Portugal, Agosto 2010)


(sempre me soube melhor trinchar a carne no prato depois de saber
que era daquela vaquinha super fofa da vizinha.)


quinta-feira, setembro 09, 2010

malmequer

um bom dia
um mau dia
um bom dia
um mau dia
um bom dia
um mau dia
um bom dia
um mau dia
um bom dia
um mau dia
um bom dia
um mau dia
...
n+1.


(nunca acaba. acaba?
e porque é que não se chama bemmequer?)

segunda-feira, setembro 06, 2010

who are you

       
ca'los c'ús. era assim que, na idade tenra, a minha irmã chamava o apresentador do 123. era o seu predilecto. estava na inocência de achar, ou de nem pensar, que um homem só deseja uma mulher para lhe dar beijinhos e ser mãe de filhos. que um homem só deseja uma criança como pai, ou como irmão mais velho, para a amar candidamente. nunca para encontrar na sua pele doce o que não encontra no companheira/o. nunca para encontrar nas suas entranhas algum prazer.

saiu esta 6aF no Público uma reportagem sobre o Parque Eduardo VII. falava-se dos cenários que se criam. da prostituição por prazer, por dinheiro. das fugas às rotinas. das rotinas alternativas. e das personagens. o sérgio é casado e a mulher "nem sonha que ele faz aquilo". ele vai buscá-la ao emprego, jantam, conversam e fazem amor. só depois, pela calada da noite, enquanto ela dorme, vai satisfazer os outros. ela não lhe conhece as faltas. as necessidades. desconhece-lhe a incompletude que o preenche e que, noite após noite, procura numa vida pouco bem vista aos olhos da sociedade convencional. estes familiares são outsiders. são gentes que vivem na incredulidade que estas coisas acontecem perto. o que ouvem são estórias que se contam, estórias de gentes doentes. mas, acima de tudo, de gentes distantes.

quando os noticiários anunciaram o escandâlo dos meninos da casa pia e dos seus intervenientes, descaiu-nos o queixo. caiu perante o povo, e caiu perante as famílias dos acusados. como se lida com isto? com um lado lunar que desconhecemos e que faz parte de quem amamos? é passível de ser amado? prefere-se acreditar e perdoar, ou é preferível negar e acreditar no que o parceiro nos assegura? de qualquer das formas, é preciso muito amor. ou muita "logística".

depois das sentenças lidas, passou-me pela cabeça a possibilidade de eles serem 'inocentes'. dessa ínfima possibilidade que tantas vezes escapa às mãos da justiça. da possibilidade de haver essa possibilidade. e ficou a dúvida. a germinar. mas absolvidos ou não um dia, o povo julgou o que ouviu. e foi inflexível. após a confiança traída, não há veredicto que lhes volte a caiar as vidas.

depois das sentenças lidas, ficam as mulheres dos réus. as famílias. pois ainda que declarada persistentemente a inocência, fica a pairar, como abutre incansável, a possibilidade de eles serem mesmo culpados.


(não há nada mais corrosivo do que a dúvida. quando a confiança é abalada, é ela que lhe destrói as bases.)
       

 

quarta-feira, setembro 01, 2010

stupidity


"... suppose i never ever met you
suppose we never fell in love
suppose i never ever let you kiss me so sweet and so soft
suppose i never ever saw you
suppose you'd never ever called
suppose i kept on singing love songs just to break my own fall..."*


teria sido melhor?


(*Regina Spektor, Fidelity from Begin to Hope, 2006)