sexta-feira, setembro 26, 2008

Elefantes

          
Eu se estivesse na sala de um exame
ou a percorrer os corredores da minha escola
ou a passar na rua

E viesse um sujeito direito a mim
de arma empunhada na mão

morria.

Mas morria antes. Antes que a bala fosse disparada, antes que a bala me atingisse.
Morria da antecipação, morria do sentimento de transgressão

porque Master Wayne I told you so
porque It's the good advice that you just can't take
porque devia ter ficado em casa
(à espera que o prédio desabasse
ou que a bilha de gás explodisse)
aninhadinha na minha cama
à espera.

À espera de morrer depois.

(o recorte de Jornal que a Susana me deu dizia que o rapazinho de 22 anos tinha bilhetes no quarto onde exprimia o seu ódio pelas «pessoas e pela raça humana». Compreendo. Podemos escapar de todos os que nos rodeiam, trancarmo-nos no nosso quarto e ficar na solidão. Mas, ainda que tentando ignorar, estamos ininterruptamente presentes para conseguirmos escapar de nós mesmos.)
       
    
         

Please let me please you.


Se, por um lado, vivemos numa sociedade demasiado egocêntrica, por outro, temos a mania de andar a lamber botas para subir de degrau. Mas pior que ter que as lamber, é suplicar para lhes passar a língua encima. Porque só assim, pensamos nós, o outro vai reparar que há qualquer coisa a fazer comichão lá em baixo. E só assim, pensamos in-cre-du-la-men-te nós, perante o desconforto da dádiva, iremos receber.

(Não sei, não me parece que isto seja tão claro visto de dentro, ou de baixo, do sítio onde se cheiram as botas, mas sinto o meu estômago (es)pasmado quando presencio este dar-com-ela-fisgada – torna-se indecente.

sim, indecente. este Please subtil. este Let me please you ardiloso.)

E o pior é que quem se oferece, ainda que tenha a consciência do desconforto que gera, da obrigação que provoca, não percebe o reverso da medalha. É que Ouvir peganhento o elogio – incómodo, A risadinha amarela – insuportável, A gargalhadinha fininha a rebentar – despropositada – e sentir Lambeeer, com aquela língua enrolada de trejeitos de um british accent, as botas já insuportavelmente lambidas por tantos outros, gera um desdém imperturbável por parte de quem se sente obrigado a gratificar. Porque o outro iça mas sem vontade – Oh você aí, ice lá este que já me chateia. Porque o outro compra sem gostar.

E acabamos por nós próprios definir como queremos subir os degraus – içados por uma corda podre. E acabamos por, nós próprios, nos colocar no lugar que merecemos – o lugar da fruta incipiente à espera da primeira oportunidade para ser deitada fora.

quinta-feira, setembro 25, 2008

Sinais


O semáforo ficou verde, e o senhor parou. Estancou o carro, de mãos no volante, e esperou. Os de trás apitaram, com a razão, pensaram eles, Olha-me este parolo a parar no verde!

mas,

parolos são eles que não percebem que este homem pára nos verdes e avança nos vermelhos. Parolos são eles que não sabem e, pior que isso, não querem saber o porquê do senhor parar nos verdes e avançar nos vermelhos. Parolos são eles que fazem as coisas pela ordem, e seguem as cores quando atam os sapatos e abotoam as calças, quando fazem ofícios ou orçamentos de estado, quando discutem leis e apregoam morais. No fundo, quando seguem as cores para julgar o outro ou para barrar manteiga na torrada da manhã.

Pa-ro-los. Porque se enfileiram atrás das regras, e as seguem num jogo cego de Rei Manda. Porque as seguem mesmo quando já nem sabem quem manda. Porque perderam o sentido das coisas. Porque nem questionam o sentido das coisas. (Que mania de avançar nos verdes e parar nos vermelhos.)

por isso,

fascinam-me estas pessoas que param nos verdes. Porque certamente avançam nos vermelhos e geram o caos. Ou esperam o azul sem estranhar a demora [tudo é uma imensa descoberta] e, depois, geram o caos.
Que vêem o mundo ao contrário, de pernas para o ar. Ou sem ser ao contrário, que o vêem do avesso. Ou sem ser do avesso, como uma infinidade de peças de puzzle totipotentes.
Que esticam as regras, e as encolhem e amarfanham depois, só para que possam caber no frasquinho que lhes reservaram. Ou que não reservaram e que arranjaram ali. Agora. O frasquinho pelo qual passam e ao qual deitam a língua de fora só pelo gozo de as ver contorcidas e miseráveis, desesperadas.

por isso,

fascinam-me. Quando pegam nas rotinas e as olham de baixo a cima, e então percebem que não têm sentido ou que o seu sentido seria maior se fossem sanitor ou nitorsa ou ainda tarnios.

(mas, depois desta consciência, amarfanham-se e preenchem os espacinhos ocos e até os não-ocos da minha cabeça os porquês de também eu avançar nos verdes e parar nos vermelhos. Afinal, parola sou eu.)

quinta-feira, setembro 18, 2008

Urgência


[conteúdo potencialmente capaz de provocar reacções nas vísceras.]


Nas minhas últimas incursões à Urgência há coisas que me ficam. Coisas. Coisas que nem são o sumo da ida à Urgência. Não são. Porque o que me fica destas incursões não é a procura do alívio dos sintomas, ou o próprio alívio dos sintomas; não é a segurança de ter alguém sábio a aliviar-me os sintomas, a procurar-me as origens, a curar-me os males. Também não é o facto de encontrar auxiliares exaustas e carrancudas ou médicos inatingíveis. Não é o cheiro e as peles amarelas. Não é o desespero humano nem os limites que se ultrapassam. Nem é o cansaço da espera nem sequer o cansaço da luta.

O que me fica das Urgências são os momentos em que eu entro triunfante

pela sala de espera adentro
cheia de pessoas a olhar para as moscas. Isso e a olhar umas para as outras, e a ouvir o que umas dizem para as outras
porque estão cansadas, cansadas daquela espera. Isso e cansadas da vida, e então reparam e olham escancaradamente o momento

em que eu (re)entro triunfante nessa sala, num esforço de equilíbrio e jeito para não perturbar o líquido amarelo no copo de plástico branco a baloiçar a baloiçar a baloiçar.

[as minhas faces vão Boom]

Isso, e o momento em que a médica dócil e simpática sai do gabinete e entra

pela sala de espera adentro
cheia de pessoas a olhar para as moscas. Isso e a olhar umas para as outras, e a ouvir o que umas dizem para as outras
porque estão cansadas, cansadas daquela espera. Isso e cansadas da vida, e então reparam e ouvem escancaradamente o momento

em que a médica se dirige a mim com um copo de plástico branco e diz Depois faz para aqui está bem?

[as minhas faces vão Boom]

(confesso que não percebo porque é que as minhas faces vão Boom. receber o copo, utilizar o copo, retornar com o copo no contexto de uma Urgência é perfeitamente normal.)

Isso e também a senhora do guichet no piso das Colheitas que me fala do Procedimento. Já sabe o procedimento? Não. Lava-se, deixa correr um pouquinho e depois faz para aqui [aponta para os frasquinhos apropriados], sim? (Como é?) Lavo-me? Sim, no bidé. A casa de banho está preparada para isso.

(bidé. na casa de banho de um hospital público. ora aqui está uma coisa que eu confesso que não vou perceber.)

P.S.: Mas eu não me queixo. Nãaaao. Eu simplesmente relembro. E, depois de relembrado e remoído, penso com as faces enrubescidas que o que me fica nem sequer é o sumo da ida à Urgência. Ou o próprio palco da Urgência. Que não é o facto de encontrar auxiliares exaustas mas dedicadas ou médicos reticentes com o peso da responsabilidade. Que nem são as histórias que se vêem, nem as lições simples que nos estalam na face. Que não é a humanidade amachucada por um cansaço de espera, e por um cansaço de luta.

Que o que me fica como urgente para relembrar é tão-somente o que faz as minhas faces ir Boom, e o meu ego(centrismo) atadinho quando expõe a parte ridícula da intimidade.
         
     
         

quarta-feira, setembro 17, 2008

sim, indiferença.

    
Quando o meu corpo apodrecer e eu for morta
Continuará o jardim, o céu e o mar
E como hoje igualmente hão de bailar
As quatro estações à minha porta.

Outros em Abril passarão no pomar
Em que eu tantas vezes passei
Haverá longos poentes sobre o mar
Outros amarão as coisas que eu amei.

Será o mesmo brilho, a mesma festa,
Será o mesmo jardim à minha porta,
E os cabelos doirados da floresta,
Como se eu não estivesse morta.


(custa-me esta indiferença. porque não mede o tamanho das nossas sensações, dos nossos afectos, das nossas dependências. não mede o tamanho dos medos, das ambições - do desejo de termos sempre mais que um momento. sim, custa-me. porque não mede os sonhos, não mede os planos, e o quanto nos vemos incompletos para completar. porque não mede o amor dos outros e as consequências da privação. porque não mede a justiça nem a injustiça. e procede absurda e inconsciente. ao acaso. e não repara na ironia.

indiferente.

e, por isso, custa-me. porque não mede o tamanho do apego que ganhamos à vida.)



[poema: Sophia de Mello B. Andresen]
   
      

terça-feira, setembro 09, 2008

Cube

Combinações. 24 x 24. Imensos os cubinhos que se movem numa ordem rígida e perfeita. Até que tudo volte ao início. À perfeição*. Para que se possa desmoronar em seguida e repetir o ciclo.

(o desespero humano de não conseguir perceber o que não tem um sentido.)

Vou para casa. Não sei quando foi o início, nem se quer se algum dia tive o início, mas sinto os cubinhos na minha cabeça, a mover a mover a mover. Seguem movimentos ritmados; vão-se dispondo e caminhando no sentido da ideia primeira, única, perfeita. As palavras encaixam-se, constroem-se, combinam-se. E atingem: Tenho que escrever, Já.
Mas o instante passou. Vagarosos e impassíveis, retomam o ciclo. Vejo as ideias desmontarem-se (desmoronarem-se) a pouco e pouco. Esqueço as palavras. Já não sei como voltar.

Ideias. Palavras. Como cubos. Montam-se, atingem o momento em que a eclosão madura do fruto é possível, e voltam a desmontar-se.

(o desespero de se ter o momento na mão e de o deixar escapar, irreversivelmente.)


*A “perfeição” é, em si mesma, um conceito inatingível. Mas, ainda que sabendo as nossas limitações, procuramos sempre a proximidade do Horizonte.

sexta-feira, setembro 05, 2008

Colheitas

   
Tenho o frigorífico cheio de tomates. No meu prato é possível reparar nos resquícios de conduto afogados no imenso desabamento vermelho. Proteínas e: tomate cru, tomate cozido, tomate recheado, refogado de tomate, tomate au chef, tomate au garçon, doce de tomate, etc. Tomate au hasard. (eu até fazia isto tudo, se passasse o dia entregue à questão dos tomates. como não passo, segue o tomate cru.)

A mãe natureza é de facto generosa. O problema é que antes do tomate veio a alface. E toca de passar uma época a comer alface. Até se gastar o sabor e ser já tudo uma amálgama de folhas verdes em pedaços. O problema também é que antes da alface veio o alho francês. E antes do tal veio o outro, e assim por diante.

E agora, quando passar o tempo do tomate, virá o tempo da abóbora, depois da couve portuguesa, o tempo dos grelos de couve, o tempo dos nabos, dos grelos de nabo, dos grelos de couve, do feijão verde.

E em todas estas épocas eu me imagino sentada à mesa, numa figura triste e desconsolada, a mastigar interminavelmente um poço de legumes de época.

E confesso que, aparte a sua generosidade, me saturam estes desequilíbrios da mãe natureza.

(a Susana diz que não são desequilíbrios: que a mãe natureza é que não vive à nossa custa. Que faz é o que lhe dá jeito, a ela. Hm. Prooooonto, reformuuulo. Confesso que me satura esta indiferença da mãe natureza.)
 
       
 

quinta-feira, setembro 04, 2008

Solidão (II)


I
A velha olhou o Horizonte. Em frente, as luzes iam-se acendendo e as famílias reuniam-se em torno de conversas animadas. Fechou a janela. Os estores sujos afiguraram-se mais pretos. Sentou-se na cama, fechou os olhos e lembrou. Outros tempos, dizia ela, Outros tempos.

Percorreu o caminho comprido. Há quatro dias que se encerrara em casa para trabalhar. E soube-lhe bem. Estava para continuar. Mas os amigos insistiram. Tens que sair, vai fazer-te bem. Vamos àquele bar, anda. Foi. Quando chegou tinha o lugar à espera. As conversas, os festejos, os copos. Subitamente, Tanta gente ali. Quem são estas pessoas. Tanto barulho. Só.

Tinha 27 anos. O corpo inerte, em coma há 18 anos, não parecia fazer conta dos cuidados. Todos os dias enfermeiros, médicos e auxiliares passavam por aquele quarto. Todos os dias os pais entravam e falavam com ela. Pegavam-lhe na mão e sonhavam. Mas o mundo mudara à sua volta. E, inconsciente dessa mudança, inconsciente já de si mesma, permaneceu a menina que antes fora.


II
Há tantas pessoas sozinhas.
Se as pessoas sozinhas se juntassem todas
deixava de haver pessoas
sozinhas.

(deixava?)

(à noite no escuro do meu quarto
oiço o meu coração no silêncio bater batER BATER e penso
Se eu morresse agora
morria sozinha Sem ninguém
saber.

e dói-me cá dentro a Solidão.)

quarta-feira, setembro 03, 2008

Solidão (I)

Sorriu.
apertou-me a mão e disse
Está tudo bem.

senti-lhe o aperto do peito.
Está tudo bem.


[“(…) Dão-se os lábios, dão-se os braços dão-se os olhos, dão-se os dedos, bocetas de mil segredos dão-se em pasmados compassos; dão-se as noites, e dão-se os dias, dão-se aflitivas esmolas, abrem-se e dão-se as corollas breves das carnes macias; dão-se os nervos, dá-se a vida, dá-se o sangue gota a gota, como uma braçada rota
dá-se tudo e nada fica.

Mas este íntimo secreto que no silêncio concreto, este oferecer-se de dentro num esgotamento completo, este ser-se sem disfarce, virgem de mal e de bem, este dar-se, este entregar-se, descobrir-se, e desflorar-se,
é nosso de mais ninguém.”

António Gedeão, Poema do Homem Só, 27 Dezembro 1956, publicado em Teatro do Mundo, 1958.]

segunda-feira, setembro 01, 2008

Baratas

Económicas, chama-lhes a Susana.
E são: borrifam-se abundantemente com o Mata-Spray e, ainda assim,
duram, duram, duram, duram...

(eu sei que devia meter o pé encima e pronto.
mas a sensação do meu sapatinho naquelas costas arqueadas, naquele corpo cheio de patas, naquela minúscula cabeça com antenas, naquela criatura crocante e inteligente,
também dura, dura, dura, dura...)