quinta-feira, setembro 18, 2008

Urgência


[conteúdo potencialmente capaz de provocar reacções nas vísceras.]


Nas minhas últimas incursões à Urgência há coisas que me ficam. Coisas. Coisas que nem são o sumo da ida à Urgência. Não são. Porque o que me fica destas incursões não é a procura do alívio dos sintomas, ou o próprio alívio dos sintomas; não é a segurança de ter alguém sábio a aliviar-me os sintomas, a procurar-me as origens, a curar-me os males. Também não é o facto de encontrar auxiliares exaustas e carrancudas ou médicos inatingíveis. Não é o cheiro e as peles amarelas. Não é o desespero humano nem os limites que se ultrapassam. Nem é o cansaço da espera nem sequer o cansaço da luta.

O que me fica das Urgências são os momentos em que eu entro triunfante

pela sala de espera adentro
cheia de pessoas a olhar para as moscas. Isso e a olhar umas para as outras, e a ouvir o que umas dizem para as outras
porque estão cansadas, cansadas daquela espera. Isso e cansadas da vida, e então reparam e olham escancaradamente o momento

em que eu (re)entro triunfante nessa sala, num esforço de equilíbrio e jeito para não perturbar o líquido amarelo no copo de plástico branco a baloiçar a baloiçar a baloiçar.

[as minhas faces vão Boom]

Isso, e o momento em que a médica dócil e simpática sai do gabinete e entra

pela sala de espera adentro
cheia de pessoas a olhar para as moscas. Isso e a olhar umas para as outras, e a ouvir o que umas dizem para as outras
porque estão cansadas, cansadas daquela espera. Isso e cansadas da vida, e então reparam e ouvem escancaradamente o momento

em que a médica se dirige a mim com um copo de plástico branco e diz Depois faz para aqui está bem?

[as minhas faces vão Boom]

(confesso que não percebo porque é que as minhas faces vão Boom. receber o copo, utilizar o copo, retornar com o copo no contexto de uma Urgência é perfeitamente normal.)

Isso e também a senhora do guichet no piso das Colheitas que me fala do Procedimento. Já sabe o procedimento? Não. Lava-se, deixa correr um pouquinho e depois faz para aqui [aponta para os frasquinhos apropriados], sim? (Como é?) Lavo-me? Sim, no bidé. A casa de banho está preparada para isso.

(bidé. na casa de banho de um hospital público. ora aqui está uma coisa que eu confesso que não vou perceber.)

P.S.: Mas eu não me queixo. Nãaaao. Eu simplesmente relembro. E, depois de relembrado e remoído, penso com as faces enrubescidas que o que me fica nem sequer é o sumo da ida à Urgência. Ou o próprio palco da Urgência. Que não é o facto de encontrar auxiliares exaustas mas dedicadas ou médicos reticentes com o peso da responsabilidade. Que nem são as histórias que se vêem, nem as lições simples que nos estalam na face. Que não é a humanidade amachucada por um cansaço de espera, e por um cansaço de luta.

Que o que me fica como urgente para relembrar é tão-somente o que faz as minhas faces ir Boom, e o meu ego(centrismo) atadinho quando expõe a parte ridícula da intimidade.
         
     
         

2 comentários:

Filipa Júlio disse...

não provocou reacções nas vísceras mas antes na zona da boca - and the smile goes boom!
:)

menina de porcelana disse...

(tremi com o que poderia encontrar "debaixo" do teu nome. lol.)

compreendo. há pessoas que acreditam que os velhotes não andam cá há mais tempo que nós, e que por isso podem ser tratados como crianças, como crianças sem cérebro!, aliás. porque as crianças nem são inteligentes nem nada. :S