Anteontem à noite, ainda que por instantes, quebrei um bocadinho do mundo da minha avó.
Eu explico. Nos seus 94 anos de vida, a minha avó já não tem vida social. Para além da pouca mobilidade, já pouco vê (digamos que ainda reconhece os netos mas que a taxa de erro ronda os 5%... e se lhe perguntarem se o que tem no prato é peixe ou batatas, aproxima-se dos 90%). Ora, quem pouco ou nada vê refugia-se no que ouve, e se o volume for criteriosamente ajustado (i.e. no máximo!) é quase impossível não ouvir. Aparece então, para preencher o vazio dos dias e o lugar no céu, a sessão do terço, religiosamente acompanhado na famosíssima RR (também conhecida por Rádio Renascença) todos os dias às 18.30. E se por acaso passa o relato da bola ai o relato da bola! Fica desconsolada mas não usa palavrões pois a minha avó sabe palavras esquisitas mas não diz palavras feias. Ora,
o dia tem 24h e os 30 minutos de terço é coisa pouca para quem já não tem muito que fazer senão dormir, esperar pela hora das refeições e circular de tempos a tempos para cumprir calendário(s). Ora, acontece que
por volta da hora de jantar, enquanto se aquece debaixo das mantinhas no sofá e vê com pesar a minha mãe subir e descer 2 lanços de escada para lhe trazer a sopa, anuncia-se no grande ecrã (não tão grande que seja visível para os pequeninos olhos da minha avó) o magnífico, único, e portador da boa disposição, senhor Carlos Malato. Ora,
a minha avó, perdida nos êxtases da audição e na voz sonora daquele senhor, lá acaba por prestar atenção às perguntas. E visto que até sabe palavras esquisitas lá acerta volta e meia nas respostas e, pronto, ganha afecto ao senhor. Então, nas noites em que apareço, solta-me ansiosa a confissão
- daqui a pouco vem A Herança!
Não é que eu esteja por-dentro-destas-coisas, mas na outra noite achei por bem esclarecê-la. E actualizá-la. Afinal, ainda que seja Natal, as verdades têm que se fazer saber.
- oh vó? Sabe aquele programa do Malato? Aquele programa que a avó gosta! A avó não sabe mas aquilo já não é A Herança.
- Não?
- Não vó, isso era dantes, agora já não há disso. Agora, as pessoas não recebem o que merecem ou mesmo o que é justo [mas não que a herança de facto garanta isso…]. Não. Agora as pessoas manipulam para receber, fazem Jogo Duplo.
- Ai é?
- É, vó…
(o que ela não sabe é que dantes também era assim, mas que nem sempre os olhos vêem e nem sempre os ouvidos ouvem o profundo-sentido-das-coisas.)
Doeu-me. Mas lá ficou com a ideia. Claro que eu sei que não há-de durar muito e que hoje à noite, por volta da hora do jantar, quando as vozes do ecrã anunciarem o Malato abençoado, a minha avó vai meter os ouvidos à escuta e dizer à minha mãe que
- lá vem A Herança!
E que hei-de eu fazer? Talvez esperar que esta forma “simples” de ver o mundo, esta forma que escuta para logo depois obliterar as partes-feias-da-existência, me seja passada de alguma forma em herança pelos mistérios duplos da hereditariedade.
2 comentários:
Isso faz-me lembrar a minha mãe (já pra não falar, obviamente, da minha avó), tantos iogurtes de framboesa que eu comi porque "olhei e vi vermelho, pensei que fosse morango".
Nunca percebi como é que é possível olhar para uma coisa sem ler o que lá está, despreocupações.
"Se puderes olhar, vê. Se puderes ver, repara."
Está tudo no Livro dos Conselhos...
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