ela entrou, balanceou entre as varas de suporte, como macaco de galho em galho, e deixou-se a rodopiar no meio do autocarro. tinha a pele morena e os beiços inchados. calças justas de ganga com t-shirt de cor incerta. tinha também o cabelo enrolado, longo, a terminar num caracol escuro. mas o que nela cativou foram os rugidos, os balbúcios tenebrosos com que falava ao telemóvel. vinha numa conversa crua que alongava em silêncio e quebrava logo de seguida com violência, chuviscando as pingas da fala e mostrando os dentes roídos decerto pelos açúcares da gula.
era um cenário de suster a respiração. era vê-la mandar bufos de impaciência, levando as mãos à testa pequenina, ao crânio minúsculo. era vê-la mover amplamente os cotovelos como se pudesse afastar os demónios que a atormentariam. era vê-la. e logo se nos estarrecia a visão.
depois, já certo consumida de maldizer a vida e quem lhe falava do outro lado, deixou-se cair no banco. entrevi-lhe o desespero. mas ignorei.
toca para parar o autocarro. pára. sai uma mãe com a filha pequena pela mão. sai ela também.
observo ainda. os olhos prendem-se-lhe no quadro que mãe e filha pintam ao andar. na mãe e na filha. na filha. então, curiosa, sem desfitar, noto-lhe o olhar. deixo-me ficar nele. os olhos pestanudos contemplam enternecidos a cachopa. e alonga-se nos beiços inchados um dos sorrisos mais benevolentes que já vi.
eu? fujo depressa. enfio-me num buraco cá dentro. e vejo-me a diminuir a diminuir a diminuir. até ficar mirrada que nem uma criatura oca.
(tenho este terrível hábito de observar demoradamente as pessoas. mas, ainda assim, a contínua insatisfação de não lhes conseguir descobrir os fundos.)