De há uns anos para cá que reparo neste facto. A resistência das pessoas em mudar de estado. Óbvio, dir-me-ão alguns: poupança de energia. De facto, e num exemplo muito concreto, tendemos a manter os guarda-chuvas abertos quando pára de chover. E isto é uma poupança de energia, certo? Pois. Fechar o guarda-chuva implica inovação, mantê-lo aberto só implica rotina. E um braço erguido com músculos contraídos na continuidade de um tempo. Poupança de energia? (Bah…).
Parece-me que este facto reúne não só fragmentos de inércia, ou de preguiça, mas também outro tipo de evidência: de facto, muitas vezes só damos conta que parou de chover quando olhamos para o sujeito ligeirinho que nos ultrapassa. E o que tem este sujeitinho de especial? É que este sujeitinho passeia-se já de guarda-chuva a balançar no braço (i.e. fechado). Nesse momento, e nesse exacto momento, damos conta que:
- Oh, parou de chover! Oh, ele já fechou o chapéu! Oh, e eu não!
(dito por outras palavras, a consciência do próprio através da consciência do outro. Ou seja, o que acontece é uma actualização da revelação do jardim do Éden: - Oh, estás nu! Ah! E eu também! – simplesmente, agora, numa situação de desigualdade: Ah, e eu não!)
E o que acontece a partir daqui? Isso é outra questão. É que a comparação com o outro tem muito que se lhe diga. De facto, quando vemos um sujeitinho a passear de chapéu a balançar, fechado, percebemos que (a) o outro tem o chapéu fechado, e (b) nós temo-lo aberto, que (c) ou ele é parvo, (d) ou nós estamos desactualizados. Cedo nos apercebemos que, afinal, (e) parou mesmo de chover e que (f) o outro está já melhor adaptado à situação. Logo, inevitavelmente, (g) sentimo-nos ridículos.
E o que fazemos quando nos sentimos assim, (g) ridículos e (d) desactualizados? O outro dia, num cenário de chuva-molha-parvos, vi passar por mim pessoal-do-chapéu-já-fechado. Confronto traz consciência, consciência traz decisão – fechei o chapéu. Num ápice, passa por mim um inerte-ainda-com-o-chapéu-aberto. Olhou-me, catrapiscou-me o chapéu-já-fechado, e prosseguiu. Sem fechar o chapéu.
Pasmei. Não pode ser, isto vai contra a hipótese! E até poderia não ser, e poderá não ser assim mas, então, sorrateiro, depois de passar por mim e de passar a dar as suas costas às minhas, eis que o senhor fecha o chapéu [tive que espreitar... ...]. Hmmmm!
(parece-me a mim que há todo um enigma em torno desta questão de fechar ou manter-aberto o chapéu. e a olhar para as coisas, a tentar vê-las, isto é acaba por ser uma revisão de vida: uns andam toda a vida de chapéu aberto, debaixo dele, cegos por ele, sem notar que estão desactualizados. Outros insistem em fechar o chapéu, Chova não chova, é sempre ridículo e eu aguento nevões. E molham-se. Outros, fecham, abrem, tornam a fechar, e não necessariamente em consonância com a queda da chuva. Outros ainda abrem-porque-o-outro-abriu – fazem porque o outro fez, avançam porque o outro avançou - mas, cegos pelo orgulho, insistem em manter-se na sua, em não remediar o feito, em não fechar o chapéu, embutidos numa vergonha – essa sim, ridícula - só para não terem que admitir que outro, afinal, está agora melhor adaptado – leia-se, um pouco mais correcto - que nós. E é esta parte da natureza humana que me angustia: quando não nos permitimos o arrependimento só porque não queremos vergar o orgulho. Porque não é o conhecimento de que estamos nus que nos afasta do Éden, pelo contrário, é a recusa em admitirmos que o estamos.)
[Agosto, 2008]