sexta-feira, março 18, 2011

Penafiel - Porto, serviço urbano


sentei-me. tirei o caderno. abri o caderno. pousei o caderno. (nunca apetece ler nas viagens relativamente curtas de comboio). olhei para fora. olhei para dentro. olhei em volta. vi.

ela, larga e de braços rechonchudamente cruzados sobre si, atravanca o banco. tem os cabelos cinza escuro brilhantemente puxados para trás num pequenino rabo de cavalo. ao lado, ele, o presumível filho, senta-se descaído no banco. puto dos seus trinta, tem nas mãos um leitor de música e na cabeça um boné de pala. ela mostra impaciência, inquieta-se, rumina pensamentos, lançando-lhe olhares furtivos como quem verifica acções. ele, de fones nos ouvidos, rígido que nem pedra, ignora.

ela olha para ele, desanima, remexe os pensamentos e escolhe o que mais a incomoda. ele não ouve, ela repete, queixa-se do som daqueles malditos fones. desespera. ele dá enfim sinais de vida. mexe no mp3 (ou coisa que o valha), deve baixar o som. ela repete. fala da prenda do primo. de quando lhe a deveriam dar. ele, ainda sem sinais de vida inteligente, não responde. mas lança, alguns segundos depois, a sua opinião de adulto a caminho da adolescência: 'oh! então quando foi os meus anos eu também abri antes!'. ela ouve. risposta. desanima. não se entendem. depois,

silêncio.

de rompante, com brados carregados de pronúncia-do-norte,

ele, grave, explodindo gafanhotos, mas sem mexer um cabelo:
- faltam 8!
ela, estrebuchando e num misto de 'surpresa' e 'lá-vem-mais-do-mesmo':
- 8? 8 quê?
ele, como que constatando o óbvio:
- paragens!
ela, no tom mais desesperado que lhe conheci:
- ai balha-me deus! então mas tu estás agora a contar paragens?!
ele, gafanhotando de orgulho (mas ainda sem mexer um cabelo):
- de vez em quando conto!

(devia ser, não sou. adepta de todo e qualquer transporte público. frequento por necessidade, por desespero de causa. prefiro o pé. prefereria também o carro próprio, símbolo de independência. pronto, de comodismo. não tenho. não uso. uso o comboio. gosto do comboio. simpatizo com o comboio. só não suporto autocarros. frequento por pressa, por preguiça. e, repetidamente, arrependo-me. sempre. mas então, dentro, encharcada nos bafos quentes da manhã, no cheiro ao ácido dos dentes, nos suores das corridas breves, na água dos guarda-chuvas; depois de longos períodos de espera na paragem, de longos períodos de espera na estação; depois das impaciências, dos apertos para entrar, dos empurrões para sair, aperece-me sempre um marmanjo que me rende a viagem. e pergunto-me - respasto-me até a pensar que! - se andasse sempre pelo meu pé em viagens solitárias, ou enfiada dentro de um carro, como seria possível contemplar tão longa e ricamente estes presentes do quotidiano?)


[Julho, 2009]

5 comentários:

nanocontos / memes disse...

Para as viagens curtas:

http://4.bp.blogspot.com/-3miPRVTBBpg/UEjQDL860KI/AAAAAAAAClg/bUUjzzFzzQI/s1600/biscoitochines.jpg

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http://2.bp.blogspot.com/-1-nNBcOyheE/UEjQOvih6LI/AAAAAAAAClo/olmzfm_IKB4/s1600/psicografar.jpg

Cem toques cravados - Edson Rossatto disse...

Este livro reúne 500 nanocontos escritos em exatamente 100 caracteres (in http://corujiceliteraria.blogspot.pt/2014/02/resenha-cem-toques-cravados-edson.html)



Mais uns:

http://www.europanet.com.br/cemtoques/images/3_z.jpg

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http://img30.imageshack.us/img30/1585/cemtoquescravados3.png

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What is the best horror story you can come up with in two sentences? disse...

"What is the best horror story you can come up with in two sentences?"

SOURCE: http://www.reddit.com/r/AskReddit/comments/1iwylh/

20 Two-Sentence Horror Stories: http://www.sunnyskyz.com/blog/153/20-Terrifying-Two-Sentence-Horror-Stories-I-Didn-t-Think-It-Was-Possible-Until-5-When-The-Hair-On-My-Neck-Stood-Up

Six Word Stories (Shortology) disse...

Six Word Stories:

http://www.sixwordstories.net/

http://www.sixwordstories.net/page/2/

http://www.sixwordstories.net/page/3/

etc.

About "Six Word Stories" disse...

http://www.sixwordstories.net/about/
About
Dec/28/2008
Stories told in just six words.

Brevity is a virtue.

This is a collection of short short stories consisting of just six words. It was inspired by Ernest Hemingway’s famous challenge and first six word story, “For sale: baby shoes, never worn.

Six Word Stories will include stories by famous people, reader submissions, myself, and the Internet at large.

Launched by Pete Berg in December, 2008.



http://www.sixwordstories.net/2008/12/for-sale-baby-shoes-never-worn-ernest-hemmingway/

For sale: baby shoes, never worn.
12/28/2008
—Ernest Hemingway

The original short short story and the inspiration for this website. In the 1920s, Ernest Hemingway’s colleagues bet him that he couldn’t write a complete story in just six words. They paid up. Hemingway is said to have considered it his best work.