"The range of what we think and do is limited by what we fail to notice. And because we fail to notice that we fail to notice there is little we can do to change until we notice how failing to notice shapes our thoughts and deeds." (Ronald D. Laing)
segunda-feira, janeiro 31, 2011
flanquear de alto
domingo à tarde no parque atolado de gentes, um menino chora chora chora, vá-se lá perceber o porquê. pode ser do sol que brilha demais, ou da areia molhada e engraçada para calcar, pode ser do frio que mal se sente, ou ainda da brincadeira interrompida. pode nem ser nada, mas ele chora e fá-lo desalmadamente, enquanto estende um a um os pézinhos minúsculos num equilíbrio sofredor.
diz-lhe a avó com um tom pachorrento:
- anda cá bébé, anda cá, vem chorar para o carro que está mais quentinho.
(ele que chore, aquilo a mim calou-me.)
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sexta-feira, janeiro 28, 2011
quarta-feira, janeiro 26, 2011
Mʋham̑ad alBúoazízí
quando o copo está cheio, basta uma gota.
atemorizam-me os suicídios. desde sempre. não porque os acho ilógicos, irracionais e desmedidos. mas porque a mente é uma e todos vamos enchendo o copo. porque o corpo com a mente que sai todo o santo dia para a rua vender as frutas e os legumes é o mesmo que um dia chega ao posto da gasolina, e se imola. porque somos todos normais. até ao dia em que não o somos. e é essa possibilidade de metamorfose comum que me incomoda.)
segunda-feira, janeiro 24, 2011
como pode um só homem representar uma nação?
a minha tia é um amor. tem braços de ferro e força suficiente para mover montanhas. passa os dias de mãos na terra, a plantar os alhos e a ver dos kiwis e das alfaces, e a levantar-se cedo para ir levar a colheita ao mercado. e ri, muito, tanto que é um regalo vê-la a rir.
este domingo contáva-nos ela, a mim e ao meu amigo j., a sua lida da terra:
(o j. franze os olhos como quem tenta ver.)
é com uma foice de bizar, sabe?
(o j. faz um esgar de dor por não conseguir saber.)
é a como uma pedoa!
(não, não sabe. nem ele nem eu.)
mas passados tantos anos afastado das gentes das terras, que pode ele entender do que eles dizem e do que eles realmente querem saber?)
sexta-feira, janeiro 21, 2011
'à mulher de César não lhe basta ser séria, tem de parecê-lo.'
a poucas horas da eleição presidencial, procuram-se os últimos podres que poderão ainda abalar opiniões. quem já tem a opinião formada, é perfeitamente capaz de tapar os olhos ao que não quer ver. mas para quem ainda não a tem e anda à procura de alternativas [e.g. de um d. Sebastião salvador debaixo das vestes dos candidatos] estes pequenas manchas de comportamento são bem capazes de criar desilusão.
candidatar-se a um cargo político é quase o mesmo que abrir a porta da casa e deixar que vasculhem sem fio de piedade os nossos pertences. e a nossa vida. e por certo que encontrarão: a embalagem do leite no balde azul para reciclar papel, o slip leopardo para homem em vez dos boxers, a meia branca no fundo da gaveta e, ai meu deus, os restos de bolacha tipo americana nos confins do sofá.
'quem nunca pecou que atire a primeira pedra'. uma ova, quem pecou que esconda bem, fora dos focos da vasculhice, e procure o pecado do outro, bem feio e imperdoável para o publicar ao mundo e incentivar a morte à pedrada.
se os políticos são sérios ou não, isso não interessa. porque conhecendo a natureza humana dificilmente o serão. mas que pelo menos o pareçam, caramba! que não tendo a qualidade da perfeição e a capacidade de dar o bom exemplo, que tenham outras. por exemplo, a capacidade de ocultar bem a fraude, a capacidade de fazer amigos que dão alibi, e por aí em diante. é que, quer dizer, cria uma pessoa uma imagem de pureza celestial e depois, pumba!, deixam uma fralda de fora e, zás!, deixam-nos incrédulos, desamparados, desiludidos, e com o beicinho a tremer.
quarta-feira, janeiro 19, 2011
menstruação
"está menstruada?"
"não."
"então deve estar a vir-lhe."
"penso que não. acabou há coisa de uma semana e tal."
"pois." [leia-se, "pois, ou isso."]
(o ciclo são 28 dias. estar a duas semana de ter acabado, ou a duas semanas de começar vai dar praticamente no mesmo. ora pois.)
vou à ginecologista. espreita-me o útero com o olho cinzento. está entumescido. muito.
"a menstruação deves estar vir-lhe."
"hm... deve ainda faltar uma semana, talvez."
"mas está próxima. da forma como está, já passou a 2a fase."
"hm..."
(o útero rasga-se no dia seguinte.)
(o que é que eu quero tirar disto? sei lá. talvez que há muitas formas de ver o mundo. e que, depois, há os reforços - positivos ou em falta, os que vemos e os que deixamos escapar, os que nos aparecem evidentes e aqueles que vemos porque queremos ver. e são talvez esses reforços, que vindo como consequência, nos encorajam um caminho a seguir. ocasionais e casuais, vão desbastando um caminho e, inevitavelmente, esbatendo outros que não nos deram motivos para voltar a passar por lá.)
sexta-feira, janeiro 14, 2011
fazer do negro humor
confesso que sempre achei mórbida a tendência imediata de fazer piadas sobre pessoas estraçalhadas e afins. que não haveria maior insensibilidade do que rirmos da desgraça dos outros. mas mudei de ideias. pior é sofrermos com essas desgraças que preenchem a TV, que mancham de sangue os jornais, que passam de boca em boca à nossa porta. pior é afundarmo-nos nelas, nas desgraças alheias com medo que nos toquem a nós um dia, pior é desiludirmo-nos com o ser humano e, depois, como consequência, com o mundo e a vida em geral.
rir das desgraças é até muito bom sinal. sinal que apesar de tudo o que acontece de horrível à volta, nós lhe damos a volta, rimo-nos um bom bocado, e continuamos. não temos outro remédio.
quinta-feira, janeiro 13, 2011
3:45
não sei se as relações humanas têm alguma coisa de lógico. mas deverão ter, talvez,
pelo menos muito de prático.
...
terça-feira, janeiro 04, 2011
boas formas de começar o ano
(entrar numa loja de produtos hortículas, ou espreitá-la apenas pela janela, é dar asas à exploração - dos alhos, das cabras, das abelhas, dos coelhos, das beterrabas para gado, das flores, do caracol. enfim, é ter a certeza que do novo ano lhe havemos de ver os frutos, caso o tempo sacana não estrague a colheita.)
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segunda-feira, janeiro 03, 2011
'o que a gente é e o que a gente chega a ser'.
primeiro habituou-nos a ela. à destreza, ao quanto-queres desdobrável em mãe irmã tia avó bisavó e devota de nosso senhor jesus cristo. habituou-nos às mãos grossas e calejadas que secaram o queijo, estiraram as filhozes, bateram o pão-de-ló sequinho e dourado, as mesmas que durante anos lavaram paninhos, alimentaram 8 bocas saídas do ventre, estriparam a terra, esfolaram animais, e desfiaram candidamente as contas do terço, aninhando-se depois sobre o colo numa quietude de alma.
(aquelas mãos que te vi brancas)
habituou-nos à ligeireza, aos caminhos ao terço por amor a cristo, aos caminhos à Terra e à outra terra e onde fosse que tivesse que ser - o que veio da vida foi para aceitar e amanhar.
(aquele corpinho que te vi mirrado)
depois a vida pregou a rasteira e abrandou-lhe o passo. continuaram as mãozinhas ágeis e a carinha risonha enquadrada na trança de cabelo enrodilhado e longo, mas não tão longo quanto a estrada percorrida e os 96 invernos.
(aquelas madeixas que te vi de cinza)
depois cortou a trança, e foi como se cortasse o passado. continuaram os olhos pequeninos felizes de pouco, a notinha pelo natal, pelos anos e mais quando fosse e o coração achasse. continuaram as palavras e o hábito das histórias com que encheu os serões e as nossas cabecitas de mimória muita mimória de outros tempos e costumes.
depois foram as histórias. uma a uma foram sendo apagadas, perdida as páginas, esquecidas, no percorrer das coisas, enquanto as perninhas outrora altas se entorpeciam com o anoitecer.
depois foi-se a mimória toda, e deixou de nos conhecer. e foi-se quem ela era também. foi-se o sorriso e o olhar, num vácuo interrompido apenas por beijinhos de graça vá-se lá compreender os desígnios do criador e o porquê das coisas. ficou-lhe o mundo lá dentro, e nós cá fora sem lhe chegar.
(se eu pudesse ver o que tu vias, aí e quando encerraste os olhos)
depois foi-se a presença. tinha sono, muito sono. isso, dormir só e sonhar quem sabe. pois pois é. foi-se a força e a vontade. e, por fim, num último sopro, a vida.
(julgo que as pessoas, se chegarem a percorrer a velhice, se vão afastando devagarinho. deixando isto, deixando aquilo, uma coisa de cada vez. talvez para não custar tanto, a nós e a eles. o ser humano habitua-se, que remédio tem senão habituar-se, vê-los descer os degraus um a um, com vagar e paciência. e,
se assim fosse sempre, o mundo seria tão mais justo e a vida também: um degrau de cada vez, até chegar ao último. mas o último, por rápido ou mais devagar que chegue, é sempre demasiado grande.)
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