quarta-feira, setembro 02, 2009

AVC


Há muitos muitos anos, nas terras da Babilónia, todos os homens se entendiam. Mas devido a uma certa insatisfação humana, estes homens decidiram que afinal não queriam [só] a terra, queriam também o céu. Então, descontente com o facto de ter sido esquecido, Deus castigou os povos. E criou as línguas.

Subitamente, os homens passaram a falar sem que se pudessem entender. Cada palavra passou a ser interpretada de acordo, não com o que realmente era dito por quem a proferia mas, com a intenção do descodificador.

(Isto é, se o Liedson cai na área e grita Penalty!, o significado depende: (a) se o juiz é da mesma equipa - penalty significa Justiça!, e há que ser feita; (b) se o juiz é da equipa adversária - penalty significa Estou a gozar com vocês e vou-me safar!, e há que penalizar o Liedson gozão; ou (c) se o juiz veste de amarelo-e-preto, aí, o significado de Penalty! depende dos acordos antes do jogo.)

Adiante. Os povos fecharam-se sobre si. E nacionalizaram-se. Falavam com os da sua língua, desentendiam a língua alheia. Ou pior ainda, entendiam-na como queriam. Uma palavra podia dar azo a uma Peleja, ou ao início de uma Pacífica cooperação. E, assim, as palavras deixaram de valer por si, para passaram a ser somente o espírito que por elas passa*.

Avó, eu sou a i., filha da r., sou sua neta. Ela sorri, esticando as peles já velhinhas e amarrotadas. Diz-me Sim, todos cantamos, e Nosso Senhor fica contente. Isto quando ainda dizia. Agora murmura palavras indecifráveis Mu ru gu ru interminavelmente. Ou acena que sim, é pois é, vamos. Sorri de vez em quando, inesperadamente. Dá até sinais subjectivos de me reconhecer enquanto estica a mãozinha para umas palmaditas afáveis. Mas já não sei, nunca sei na ausência dos sinais linguísticos precisos, na ausência de um nome proferido, não sei se sabe mesmo quem eu sou.

(isto da comunicação é um problema. até quando todos parecemos falar a mesma língua, ouvir as mesmas palavras, ver as mesmas imagens, tudo reside na descodificação da mensagem. Avó, sou eu. Não vê a minha face, não me reconhece pelo tom de voz, não ouve as minhas palavras? tudo reside na descodificação da mensagem. uns, acarinhados pela vida, interpretam benevolamente. outros, deixam simplesmente de escutar. tudo depende do aparelho que construímos para descodificar. mas agora
entender como se constrói tal aparelho, detalhar os factores, prever o caos – isso já implica descodificar a vida. e, apesar até de muito estudo científico, voltamos ao mesmo, lá está, - cada um tem a sua interpretação.)


* Ferreira, V., 1994, Aparição.


5 comentários:

O Chefe disse...

Isso faz-me lembrar a primeira vez em que a minha avó respondeu "Não" à pergunta "Então não sabe quem eu sou?".
Deveras desnorteante e totalmente inesperado.
Aposto que a reacção da maioria é repetir a pergunta enquanto pensa "Deve estar a brincar comigo", eu, por outro lado, aproveitei a situação para a comédia utilizando a clássica:
- "Sou o Paco"
- "Paco, quê?"
- "Paco Naça!!"



... nah, não sou assim tão estúpido.

menina de porcelana disse...

boa jj! (o que vale é que o meu blog não tem uma bolinha no canto superior... ai valha-nos deus!)

(a tua avó também já devia estar desconhecedora dos trocadilhos... mas olha que eu conheço um senhor que na sua avançada idade ainda nos troca a cabeça a todos... :S enfim, pode-se 'esquecer' tudo, mas os hábitos entranham-se. mas vou-me escusar de avançar aqui em pormenores. :P)

"Nós tenemos muitos nabos" - Galandum Galundaina disse...

VIDEO: https://youtu.be/cYadPT4EWaY <- Single dos Galandum Galundaina, "Nós tenemos muitos nabos".
Tem por base dois temas tradicionais que a banda arranjou para ter um som final muito ao estilo de Galandum.

LETRA:

Nós tenemos muitos nabos a cozer nua panela, nun tenemos sal nien unto nien presunto nien bitela Mirai qu'alforjas, mirai qu'alforjas uas mais lhargas, outras mais gordas uas de lhana, outras de stopa Ls chocalhos rúgen, rúgen ls carneiros alhá banan chegando a Ourrieta Cuba ls carneiros bulberan. Mirai qu'alforjas, mirai qu'alforjasuas mais lhargas, outras mais gordas uas de lhana, outras de stopa.



https://pt.wikipedia.org/wiki/Língua_mirandesa <- A língua mirandesa (lhéngua mirandesa, mirandés) é o nome oficial que recebe o asturo-leonês em território português.

https://pt.wikipedia.org/wiki/Asturo-leonês

Caetano Veloso - Língua disse...

VIDEO: https://youtu.be/tX7cqBreLUY <- Music video by Caetano Veloso performing Língua.
(C) 2012 Universal Music Ltda



Letra:


Língua

(Caetano Veloso)


Gosto de sentir a minha língua roçar a língua de Luís de Camões
Gosto de ser e de estar
E quero me dedicar a criar confusões de prosódias
E uma profusão de paródias
Que encurtem dores
E furtem cores como camaleões
Gosto do Pessoa na pessoa
Da rosa no Rosa
E sei que a poesia está para a prosa
Assim como o amor está para a amizade
E quem há de negar que esta lhe é superior?
E deixe os Portugais morrerem à míngua
Minha pátria é minha língua
Fala Mangueira! Fala!

Flor do Lácio Sambódromo Lusamérica latim em pó
O que quer

O que pode esta língua?

Vamos atentar para a sintaxe dos paulistas
E o falso inglês relax dos surfistas
Sejamos imperialistas! Cadê? Sejamos imperialistas!
Vamos na velô da dicção choo-choo de Carmem Miranda
E que o Chico Buarque de Holanda nos resgate
E (xeque-mate) explique-nos Luanda
Ouçamos com atenção os deles e os delas da TV Globo
Sejamos o lobo do lobo do homem
Lobo do lobo do lobo do homem
Adoro nomes
Nomes em ã
De coisas como rã e ímã
Ímã ímã ímã ímã ímã ímã ímã ímã
Nomes de nomes
Como Scarlet, Moon, de Chevalier, Glauco Mattoso e Arrigo Barnabé
e Maria da Fé

Flor do Lácio Sambódromo Lusamérica latim em pó
O que quer
O que pode esta língua?

Se você tem uma idéia incrível é melhor fazer uma canção
Está provado que só é possível filosofar em alemão
Blitz quer dizer corisco
Hollywood quer dizer Azevedo
E o Recôncavo, e o Recôncavo, e o Recôncavo meu medo
A língua é minha pátria
E eu não tenho pátria, tenho mátria
E quero frátria
Poesia concreta, prosa caótica
Ótica futura
Samba-rap, chic-left com banana

(Será que ele está no Pão de Açúcar?
Tá craude brô
Você e tu
Lhe amo
Qué queu te faço, nego?
Bote ligeiro!
Ma'de brinquinho, Ricardo!? Teu tio vai ficar desesperado!
Ó Tavinho, põe camisola pra dentro, assim mais pareces um espantalho!
I like to spend some time in Mozambique
Arigatô, arigatô!)

Nós canto-falamos como quem inveja negros
Que sofrem horrores no Gueto do Harlem
Livros, discos, vídeos à mancheia
E deixa que digam, que pensem, que falem

Caetano Veloso (23/09/1996) disse...

VIDEO:https://youtu.be/-IHORuI_Uts?t=13m36s <- Caetano Veloso

Em 23/09/1996, o cantor e compositor foi o centro do Roda Viva, apresentado por Matinas Suzuki Jr.
Ele falou sobre sua vida e carreira e respondeu às perguntas de Cacá Diegues, Eduardo Giannetti da Fonseca, Cesare de Florio la Rocca, Marcos Augusto Gonçalves, Hubert Aranha e Luiz Tenório Lima.