terça-feira, outubro 13, 2009

(Des)aparições


Quando eu era pequena e tudo era ainda certo, atracava-me à mão da minha mãe e, em dias como este, desfilávamos na Procissão. Eu levava uma vela já meia gasta envolvida num pedaço de papel que me protegia dos pingos da cera quente, e dela cuidava religiosamente. E ali, no meio daqueles irmãos e irmãs, daquelas pedras da mesma Igreja, deslumbrava-me. Na noite escura, reluziam os cânticos entoados em uníssono, as orações e as preces à Virgem e ao deus Nosso Senhor, e a luz das nossas velas fazia o caminho. Encontrávamos os tios e as tias, os primos e as primas, e até os amiguinhos da catequese e da escola com quem trocávamos sorrisos e olhares enquanto, intercaladamente, se ia dando um olho ao papel protector para que não ardesse naquela chama. Os outros, pass(e)ando à beira da estrada, carregados de sacos das compras, ou circulando de bicicleta, ou acometidos a conversas embriagadas e sérias, os outros deitavam-nos olhares de estranheza e distância, Ou ignoravam-nos Simplesmente como quem finge não ver os pobres de mão estendida. Mas eram apenas Os Outros, eles, uma massa indistinta, incrédula e sem salvação.

Depois cresci. Fui deixando de acender a vela, gasta entretanto, e deixando também de seguir as multidões. A noite é escura e há-de ser. E as coisas desprovidas de um sentido. A virgem tornou-se Maria, e o nosso senhor, deles. Passei para o outro lado, sem saber que os outros, esse aglomerado de eu’s, viajam sós afinal, sem velas que alumiem um caminho. Inevitavelmente, talvez, as coisas deixaram de se explicar pela Fé. Passaram a carecer de respostas que não encontro. De respostas. E, vistas bem as coisas, começo a achar que talvez, talvez..., o problema esteja nas perguntas.


(pergunto-me se é por crescermos que as coisas deixam de fazer sentido, ou se crescemos quando as coisas perdem o sentido. sei lá. quem me dera ter ainda O sentido das coisas, A certeza do certo e do errado, descrita tão bem nos contos-de-fadas, e não esta amálgama de coisas que nos compõem e que não nos fazem nem bons nem maus. que nos fazem, tão simplesmente, Incertos. Esta amálgama de coisas que encontramos quando passamos a ver. Ou talvez, engano meu, quando nos deixamos cegar pela complexidade.)

11 comentários:

Anónimo disse...

"[...] introduz no livro a hierarquia da distância, que nos faz sofrer menos com o que está mais longe de nós. “O valor da vida humana começa a diminuir à medida que se afasta de nós: dez mil chineses não é a mesma coisa que quatro espanhóis e não é a mesma coisa que o nosso vizinho ou que o nosso periquito. Ficamos mais chateados com as coisas que acontecem aos que estão mais perto de nós. Não deveria ser assim, a vida humana não é hierarquizável através da distância, mas a verdade é que lidamos com o mundo dessa maneira.” [...]"

TEXTO INTEGRAL: http://www.publico.pt/culturaipsilon/noticia/o-livro-de-uma-palavra-so-1710187

Anónimo disse...

Ver a partir dos 16 min 47 seg:

VÍDEO: http://www.rtp.pt/play/p1580/e174953/tanto-para-conversar <- [05 Dez, 2014] Luís Osório entrevista Frei Fernando Gustavo Ventura

"o pé da Luisa Carneiro" disse...

Excerto de Eça de Queiroz (extraído de “Cartas Familiares E Bilhetes De Paris (1893-1896)”):

“As catástrofes e as leis de emoção”

"[...] E depois, tal sujeito – que choramingou, no fundo do seu camarote, assistindo à morte da Dama das Camélias, morta pela milésima vez, na sua alcova de lona e papelão – recolherá a casa e lerá no jornal, com absoluta indiferença, mastigando a torrada, que duzentas mulheres, com os filhinhos nos braços, morreram afogadas num naufrágio, longe, nos mares da Indochina!

Sim, amigos, essas duzentas mães afogadas nas vagas indochinesas certamente vos serão estranhas, e como não existentes! Se elas tivessem naufragado nos mares dos Açores, já sem dúvida tão patética nova vos arrancaria algum vago murmúrio de simpatia. Mas se elas houvessem perecido, elas e os pobres filhinhos, na baía do Rio de Janeiro, que incomparável catástrofe – e como vós correríeis pelas ruas, pálidos cheios de espanto!

Que digo eu? Para vos comover nem seriam necessárias duzentas desgraçadas – bastaria que naufragassem duas, se vós as conhecêsseis de nome e de rosto! Porque, segundo a cruel lei física que regula os fenômenos da emoção – um empregado da Alfândega que caiu de um barco e desapareceu na baía do Rio de Janeiro vale, para o habitante do Rio, mil pescadores despedaçados sobre os rochedos nas costas da Islândia!

Ah, esta abominável influência da distância sobre o nosso imperfeito coração!

Bem recordo uma noite em que, numa vila de Portugal, uma senhora lia, à luz do candeeiro, que dourava mais radiantemente os seus cabelos já dourados, um jornal da tarde. Em torno da mesa outras senhoras costuravam.

Espalhados pelas cadeiras e no divã, três ou quatro homens fumavam, na doce indolência do tépido serão de Maio. E pelas janelas abertas sobre o jardim entrava, com um sussurro das fontes, o aroma das roseiras.

No jornal que o criado trouxera e ela nos lia, abundavam as calamidades. Era uma dessas semanas também em que pela violência da Natureza e pela cólera dos homens se desencadeia o mal sobre a Terra.

Ela lia as catástrofes lentamente, com a serenidade que tão bem convinha ao seu sereno e puro perfil latino. «Na ilha de Java um terramoto destruíra vinte aldeias, matara duas mil pessoas...» As agulhas atentas picavam os estofos ligeiros; o fumo dos cigarros rolava docemente na aragem mansa – e ninguém comentou, sequer se interessou pela imensa desventura de Java. Java é tão remota, tão vaga no mapa! Depois, mais perto, na Hungria, «um rio trasbordara, destruindo vilas, searas, os homens e os gados...». Alguém murmurou, através de um lânguido bocejo: «Que desgraça!» A delicada senhora continuava, sem curiosidade, muito calma, aureolada de ouro pela luz. Na Bélgica, numa greve desesperada de operários que as tropas tinham atacado, houvera entre os mortos quatro mulheres, duas criancinhas... Então, aqui e além, na aconchegada sala, vozes já mais interessadas exclamaram brandamente: «Que horror!... Estas greves!... Pobre gente!...» De novo o bafo suave, vindo de entre as rosas, nos envolveu, enquanto a nossa loura amiga percorria o jornal atulhado de males. E ela mesma então teve um «oh!» de dolorida surpresa. No Sul da França, «junto à fronteira, um trem descarrilando causara três mortes, onze ferimentos...» Uma curta emoção, já sincera, passou através de nós com aquela desgraça quase próxima, na fronteira da nossa península, num comboio que desce a Portugal, onde viajam portugueses... Todos lamentaríamos, com expressões já vivas, estendidos nas poltronas, gozando a nossa segurança.
...

"o pé da Luisa Carneiro" disse...

...


A leitora, tão cheia de graça, virou a página do jornal doloroso, e procurava noutra coluna, com um sorriso que lhe voltara, claro e sereno... E, de repente, solta um grito, leva as mãos à cabeça:

– Santo Deus!...

Todos nos erguemos num sobressalto. E ela, no seu espanto e terror, balbuciando:

– Foi a Luísa Carneiro, da Bela Vista... Esta manhã! Desmanchou (torceu) um pé!

Então a sala inteira se alvorotou num tumulto de surpresa e desgosto.

As senhoras arremessaram a costura; os homens esqueceram charutos e poltrona; e todos se debruçaram, reliam a notícia no jornal amargo, se repastavam da dor que ela exalava!... A Luisinha Carneiro! Desmanchara (torcera) um pé! Já um criado correra, furiosamente, para a Bela Vista, buscar notícias por que ansiávamos. Sobre a mesa, aberto, batido da larga luz, o jornal parecia todo negro, com aquela notícia que o enchia todo, o enegrecia.

Dois mil javaneses sepultados no terramoto, a Hungria inundada, soldados matando crianças, um comboio esmigalhado numa ponte, fomes, pestes e guerras, tudo desaparecera – era sombra ligeira e remota. Mas o pé desmanchado da Luísa Carneiro esmagava os nossos corações... Pudera! Todos nós conhecíamos a Luisinha – e ela morava adiante, no começo da Bela Vista, naquela casa onde a grande mimosa se debruçava do muro, dando à rua sombra e perfume. [...]"

"pragmatic view of 'affect' and morality based on feelings" disse...

"[...] Finally, one can imagine a third kind of pacifism, that is rooted as much in feelings and emotion as in reason. I would put myself in this category, and appeal to what I find to be the validity of the arguments made by Adam Smith in the theory of moral sentiments when he wrote that most men would rather see a hundred men die in a far away land then lose their own little pinky (or to be less selfish, the pinky of one of their co-bloggers, especially the one I know from high school). This brand of pacifism does not oppose violence at certain times, as it is not based on some kind of Kantian categorical imperative but rather a more pragmatic view of 'affect' and morality based on feelings. That is, I believe that I would certainly commit violence to protect my own life if it were immediately threatened, as I would to protect my family and close friends. Would I kill a busload of innocents to save them or myself? I don’t know, I can’t predict my reaction, but it probably wouldn’t be based on reason. Now this may seem like a strange position, since "do what you feel like" is hardly a way to convince others (and why else am I writing this blog?). [...]"

FULL TEXT in http://invisiblecollege.weblog.leidenuniv.nl/2007/10/04/the-false-choice-of-pacifism/ (Posted on October 4, 2007 by Otto Spijkers)

"a random person dies" disse...

http://extrafabulouscomics.com/wp-content/uploads/2013/10/1011.gif
in http://extrafabulouscomics.com/comic/101/

("a random person dies")

...

não é apenas a distância que está em causa mas a probabilidade da pessoa em causa nos ser mais ou menos próxima? Ou nem isso?

"vidas que valem mais que as outras" disse...

"[...] não podemos repetir esses erros e temos que formar uma nova consciência. Essa é uma história que faz a gente pensar em como a omissão gera a barbárie. Se você finge que não vê, e a gente finge que não vê todos os dias, está contribuindo para a barbárie. A violência, a cultura de limpeza social ainda é fortíssima no Brasil: tirar das ruas tudo o que incomoda, que considera escória, que não considera gente. Um assassinato de uma criança pobre não comove o Brasil, mas o Brasil pára com o assassinato de uma criança da classe média-alta. A ideia de que tem vidas que valem mais que as outras é muito forte no Brasil. O que sustentou a existência desse hospital por oito décadas foi essa cultura, essa indiferença. [...]"

TEXTO INTEGRAL: http://www.publico.pt/culturaipsilon/noticia/a-cultura-de-limpeza-social-ainda-e-fortissima-no-brasil-1635038?page=-1

"brain fluctuations from time to time" disse...

VÍDEO: https://youtu.be/WauwNdE1mCE?t=27m52s & t=29m35s <- O Sentido da Vida na Perspectiva Racionalista - Desidério Murcho faz uma análise racional sobre a vida eterna. Uma das palestras que mais intrigou a platéia por mostrar, com exemplos simples, que a eternidade pode não ser tão boa (ou interessante) quanto alguns fazem parecer. Porto Alegre,2012, 1º Congresso Humanista Secular do Brasil organizado pela LiHS (Liga Humanista Secular do Brasil)]. Comentário a The Absurd: Thomas Nagel on the meaning of life.



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"[...] Third, the simulation of Einstein and Gates (and everyone else) can never be exact. This might be true, but it's not relevant. So what if the simulation is only 98% correct? Your own brain fluctuations from year to year are probably as great, if not greater. [...]"
FULL TEXT: http://www.edge.org/3rd_culture/ramachandran06/ramachandran06_index.html
MIRROR NEURONS AND THE BRAIN IN THE VAT [1.10.06]
by V.S. Ramachandran

Anónimo disse...

VIDEO: https://youtu.be/u2FANdhTDyI?list=PL8D95DEA9B7DFE825&t=31m14s <- [Eng Caps] [recorded in Fall 2006] Introduction to Political Philosophy with Steven B. Smith; Lecture 10: New Modes and Orders: Machiavelli, The Prince (chaps. 1-12); Chapter 5. Good and Evil, Virtue and Vice
TRANSCRIPT: "[...] One thinks, in a way, of Welles [Harry Lime]' line in The Third Man (1949) when he looks down from above and says, "If I gave you 20,000 pounds for every dot that stopped moving, would you really tell me to keep my money?" [...]"

"[...] Martins: Have you ever seen any of your victims?
Harry Lime: You know, I never feel comfortable on these sort of things. Victims? Don't be melodramatic. Look down there. Tell me. Would you really feel any pity if one of those dots stopped moving forever? If I offered you twenty thousand pounds for every dot that stopped, would you really, old man, tell me to keep my money, or would you calculate how many dots you could afford to spare? Free of income tax, old man. Free of income tax - the only way you can save money nowadays. [...]"
QUOTE: http://www.imdb.com/title/tt0041959/quotes?item=qt0359439

(supernaturalist but not particularly doctrinal) disse...

https://www.theatlantic.com/politics/archive/2018/04/ross-douthat-pope-francis/558140/

POLITICS
A Cassandra Cry Against Pope Francis
Ross Douthat's views on the pope are intensely unpopular. But has he identified a fundamental tension in the Church?

EMMA GREEN
APR 22, 2018

"(...) Catholicism, like any religion, is indeed a set of principles and writings and teachings, but it is also the lived experience of the body of believers—the church, little c. Lived religion is inevitably messier than doctrine; people’s lives and human communities confound the kind of neat, logical boxes found in Thomas Aquinas’s Summa Theologica or canon law. And Catholicism offers perhaps the richest examples of diversity within one tradition. From the folk saints of Mexico to charismatic worship in Kenya, Catholic communities often push the rigid boundaries of doctrine to find a religious expression that fits their distinctive history and tradition.
(...)
As [Ross] Douthat puts it, rather saltily, Francis has “an affinity for the kind of Catholic culture in which mass attendance is spotty but the local saint’s processions are packed—a style of faith that’s supernaturalist but not particularly doctrinal.”
(...)
The key, in all of this, is mutual recognition—maintaining enough of the core, distinctive elements of the faith to still feel spiritual kinship across these communities of vast difference. As Douthat points out, this recognition has been historically fraught within the Church, as when Pope Francis’s own order, the Jesuits, battled the French Jansenists, who pushed a strict, ascetic interpretation of Catholic doctrine.
(...)
Douthat sees Francis’s pontificate as a missed opportunity to speak into this chaotic worldwide political moment, “to raise the Church’s banner, to offer a distinctively Catholic sort of synthesis—one that would speak to the right’s fear that the West’s civilizational roots are crumbling and to the left’s disappointment with the rule of neoliberalism.” Instead, Douthat argues, Francis “has judged his church’s conservatives harshly while confirming the fears that pushed many of them toward conservative politics in the first place—the fear that a left-wing Catholic politics is inextricably linked to revolution in theology as well.”
Ultimately, Douthat’s disagreement with the pope comes down to their competing visions for Catholic unity. Francis seems to believe the Church can best sustain its moral core by allowing flexibility around the edges of practice. But Douthat is adamant that doctrine is the moral core of the Church; too much flexibility, he says, leads not to fellowship, but fracture.

This matters, because unity matters in the Church—little c or big. Jesus calls on believers to be one flock in community together, and any loss of comity might be interpreted by some as evidence of human failure to make good on that vision. This pope will test whether it’s possible to maintain connectedness among communities of incredible diversity in a time of immense change—or whether the politics of the day inevitably lead to tribal fights among the faithful. (...)"

(comparative religion) disse...

VIDEO: https://youtu.be/wFMlIZgeUg4?list=PL0LQM0SAx603HhJbBa0rC4rqKevvtgPL2&t=1m36s <- [The British Museum] Egypt: the frontier of meaning

Karen Armstrong, British Museum Trustee and world-renowned commentator on religious affairs, explores interreligious relations between Jews, Christians and Muslims in the first millennium AD.

Positioning Egypt as a leader and pioneer in the region up to the present, she conveys how its population creatively challenged the frontiers that traditionally separated humanity from the divine.

She also investigates how Egypt became a frontier zone between and within these faiths in a way that presaged some of our current problems.