Tenho uma amiga que não gosta de pobres. E diz-mo assim, chapado, Que não gosta de pobres, Que são ingratos.
(admiro-lhe a sinceridade. somos exageradamente embutidos de desiderabilidade social)
Penso nisto. Andamos tantos dias entretidos connosco próprios, que se torna inevitável não conseguir fugir à rotina. Então, cansados de tanta auto-contemplação, rebelamo-nos e decidimos fazer
algo-verdadeiramente-diferente: olha, hoje vou dar existência ao outro! E, zás, deixamo-nos abalroar pelo altruísmo. É verdade! Inunda-nos então essa onda de bem, esse estado que nos faz querer melhor para o outro, para o
próximo, do que para nós mesmos. Afinal, é tão-bonito
dar. Dar o que nos sobra, o que temos a mais em casa. Dar até o que o nosso dinheiro pode comprar. Dar. Ao outro que não tem, ao outro que não pode.
Vestimos então, plenamente motivados, o hábito de monge bom-samaritano. E, de facto, damos. Damos de sorriso na face, emocionados com esse gesto de dar. Percorremos as ruas, ou as saídas das missas, e acabamos a saltitar nos bicos dos pés, tal bailarinas apaixonadas. Porque demos! E recebemos até um conjunto de graciosidades para galardoar o gesto! E tivemos até benefícios fiscais!
Então, reforçados, prosseguimos no dar. Entregamos benevolamente o pão, e o sorriso, esperando
já implicitamente o “obrigado”. Mas, subita e inesperadamente, ui!, eis que temos um
outlier! E, em vez do galardão, sai-nos o rugido.
Penso. De onde nos vem a ideia de que os pobres têm-que-ser “gratos” (que os
cegos têm que ser “bons”?). Penso, e acabo a desconfiar que deve vir do mesmo sítio que nos
enfia a ideia que os-que-dão são
sempre humildes, e que não vestem o hábito.
(três coisinhas: (a) aprendemos a esperar o reforço, ou está-nos “no sangue” essa esperança? (b) somos, de facto, criaturas de hábitos. e até dá jeitinho sê-lo. compomos o gesto, enfiamo-lo no calendário, e pronto. temos o céu guardado. (c) mas as rotinas
também são lixados. porque, por meio de automatismos, as coisas acabam por perder o significado.
fácil é habituarmo-nos a dar, a dar o que temos, e o que temos possibilidade de ter. mas desconfio que o difícil vai mais além: deixar de
dar o resto para
se dar a si mesmo.)