sexta-feira, março 20, 2009

Hábitos


Tenho uma amiga que não gosta de pobres. E diz-mo assim, chapado, Que não gosta de pobres, Que são ingratos.

(admiro-lhe a sinceridade. somos exageradamente embutidos de desiderabilidade social)

Penso nisto. Andamos tantos dias entretidos connosco próprios, que se torna inevitável não conseguir fugir à rotina. Então, cansados de tanta auto-contemplação, rebelamo-nos e decidimos fazer algo-verdadeiramente-diferente: olha, hoje vou dar existência ao outro! E, zás, deixamo-nos abalroar pelo altruísmo. É verdade! Inunda-nos então essa onda de bem, esse estado que nos faz querer melhor para o outro, para o próximo, do que para nós mesmos. Afinal, é tão-bonito dar. Dar o que nos sobra, o que temos a mais em casa. Dar até o que o nosso dinheiro pode comprar. Dar. Ao outro que não tem, ao outro que não pode.

Vestimos então, plenamente motivados, o hábito de monge bom-samaritano. E, de facto, damos. Damos de sorriso na face, emocionados com esse gesto de dar. Percorremos as ruas, ou as saídas das missas, e acabamos a saltitar nos bicos dos pés, tal bailarinas apaixonadas. Porque demos! E recebemos até um conjunto de graciosidades para galardoar o gesto! E tivemos até benefícios fiscais!
Então, reforçados, prosseguimos no dar. Entregamos benevolamente o pão, e o sorriso, esperando implicitamente o “obrigado”. Mas, subita e inesperadamente, ui!, eis que temos um outlier! E, em vez do galardão, sai-nos o rugido.

Penso. De onde nos vem a ideia de que os pobres têm-que-ser “gratos” (que os cegos têm que ser “bons”?). Penso, e acabo a desconfiar que deve vir do mesmo sítio que nos enfia a ideia que os-que-dão são sempre humildes, e que não vestem o hábito.


(três coisinhas: (a) aprendemos a esperar o reforço, ou está-nos “no sangue” essa esperança? (b) somos, de facto, criaturas de hábitos. e até dá jeitinho sê-lo. compomos o gesto, enfiamo-lo no calendário, e pronto. temos o céu guardado. (c) mas as rotinas também são lixados. porque, por meio de automatismos, as coisas acabam por perder o significado.
fácil é habituarmo-nos a dar, a dar o que temos, e o que temos possibilidade de ter. mas desconfio que o difícil vai mais além: deixar de dar o resto para se dar a si mesmo.)

9 comentários:

Anónimo disse...

Inspirada!
Reflectir é um bom primeiro passo!

menina de porcelana disse...

joão, reflectir não costuma ser o primeiro passo
(devia sê-lo? ás vezes pensamos e REpensamos demais... e depois não passamos ao segundo...):

primeiro, porque começamos meninos. e os meninos pensam, perguntam até, mas não reflectem nas coisas.

depois, porque o primeiro passo é dá-lo. o segundo será avançar ou cair. reflectir chega tardiamente.

:P

O Chefe disse...

Pode-se considerar egoísta uma pessoa que só ajuda os outros porque a faz sentir superior?
"Ah e tal sou melhor que esses tipos que não fazem voluntariado, eu ando aqui a ajudar os desgraçadinhos. Então se me forem a comparar com estes coitados sou um rei"
Por um lado é um merdoso, mas até ajuda alguém, é preciso ter a intenção certa para "contar"?
20 de Março de 2009, 19:16 (hora finlandesa) - data de nascimento d'"O paradoxo do merdoso", fico à espera dos royalties dos direitos de autor.

menina de porcelana disse...

o chefe diz, e a menina até concorda...
mas... levanta-se a polémica: a intenção vale tudo? o que é que vale mais: no extremo, aquele que até queria ajudar mas que acabou por se descuidar e matar alguém, ou o que pretendia magoar mas acabou por ajudar? hm. complicado de dizer. ou não?

penso que a intenção traduz um indíce de consequências a longo prazo. isto é, geralmente, quando temos boas intenções acabamos por fazer melhor aos outros do que quando temos más intenções. em média pelo menos. e com desvios-padrão reduzidos. o que não significa que uma vez por outra o "bonzinho" não estrague a vida a alguém, e que o "mauzinho" não faça as delícias dos que carenciam.

mas adiante. a minha questão aqui nem é só o que sai. é o que está lá dentro. dos "pobres", dos "doadores".
devemos só olhar para as consequências, ou para os processos internos também? (no extremo, devemos ser só comportamentalistas, ou olhar para as coisas que saem como um produto de muitas interacções internas?)

dar é bom. e ajuda muita gente. mas o que se dá, tem que ser dado e administrado. passar o cheque é fácil, mas alguém tem que dar de comer, tem que dar o tempo, o afecto, a vida.
dar é bonito de se ver. mas dar-se..., dar-se passa por cima do que os olhos vêem.

O Chefe disse...

Suponho que o ideal será cortar os extremos, nem ter a intenção certa garante desculpa para tudo nem todos os mal intencionados são penalizados. Ou ainda acabamos como no minority report a prender pessoas que ainda não fizeram nada.

menina de porcelana disse...

de facto, os extremistas é que lixam sempre tudo.

;)

disbeat disse...

Apenas comentar o maravilhoso mundo em que vives que uma falta de altruísmo de alguém é uma excepção que te choca! Maravilhoso mundo esse que infelizmente desconheço...

menina de porcelana disse...

:P
a falta de altruísmo pode não ser uma excepção... vá. :P mas o que 'admiro' nela é o facto de o admitir frontalmente, independentemente de eu concordar com o que ela diz ou não (ou seja, admiro a forma, não necessariamente o conteúdo).
porque vivemos num mundo - não só mas também - de convenções. e ganhamos hábitos com elas. não é fácil viver com os outros, há uma quantidade de regras a que é preciso estar atento... por isso admiro quem, de uma forma ou de outra, consegue ser um pouquinho livre.

(e tenho que invocar : http://publico.pt/portugal/noticia/a-pepa-e-o-zico-ou-a-futilidade-e-do-bom-senso-1580374 (6º e 7º parágrafos. e 8º, vá, também.) novamente a forma, não o conteúdo...)

"Forget it" disse...

"[...] memory plays an entirely different role for the master morality; the way Nietzsche puts it they are “strong enough to forget”. So if insulted and you hit the master in the face, he hits you back and that way he honors you and then he forgets it, see. Because first of all, if he turns the other cheek he shames you by saying well you are not, you know, good enough to even fight with me. Rather, you hit him, he hits you back and then you both forget it. It’s the West Texas version of master morality. He hits you, you hit him, and then you have treated each other with dignity, and then you forget it. [...]"
FULL TRANSCRIPT in http://rickroderick.org/204-nietzsche-the-death-of-god-1991/
VIDEO in http://www.youtube.com/watch?v=OisdFRGlK-Y&list=PLA20B690583E9931C&t=4m47s



Talvez. Talvez devessemos andar todos à murraça, para depois, imediatamente a seguir, esquecer.