terça-feira, junho 07, 2011

o medo,


por paulo moura. texto da Pública, este domingo, para quem não leu. o resto pode sempre ser visto aqui.


"Iuri, foto-repórter russo da Time, fez todas as guerras, desde a Tchetchénia até ao Afeganistão e ao Iraque, onde viveu 8 anos, num apartamento arrendado em Bagdad, bem longe da Green Zone dos americanos.
Encontrei-me com ele, André e Gabriel no terminal 2 do aeroporto do Cairo, à noite. Tínhamos estado juntos na Líbia, e saído de lá quando se tornou óbvio que as tropas de Khadafi iam entrar em Bengazi. Eu fiquei no Cairo, André e Gabriel foram para Itália.Iuri, esse, aproveitou para fazer umas fotografias no Bahrein.
Alugámos um carro e partimos imediatamente. Bengazi estivera sob ataque, mas havia sinais de que tinha acalmado, diziam algumas fontes, por terem ouvido dizer. Lá não havia telefones, nem jornalistas. Aliás, era por isso que tínhamos de ir.
Durante a noite, percorremos os 700 quilómetros que separam o Cairo de Sallun, perto da fronteira. De manhã cedo entrámos na Líbia, para outros tantos quilómetros até Bengazi. Juntaram-se-nos mais jornalistas. Alugámos um autocarro, porque nos pareceu mais seguro irmos juntos.
Pelo caminho, cada um tentava estabelecer contactos, para obter informações sobre a segurança das várias cidades e da estrada. Até Al Beida não havia problemas, ouvira um. Na estrada do deserto, jornalistas tinham sido capturados pelas forças de Khadafi, dizia outro. Em Bengazi os combates recomeçaram. Há snipers em todos os edifícios. Há caça aos jornalistas estrangeiros. Assaltam os carros nos bairros periféricos. Há tiros. Há incêncios. Não se passa nada. A cidade está calma. A cidade está em guerra.
Reuníamos as informações, contraditórias, e íamos formando na cabeça uma imagem delirante da cidade de onde tínhamos partido há poucos dias. E avançávamos. Cheios de hesitações e de cuidados. Cheios de medo.
Tudo nos parecia suspeito. Quando parámos em Tubruk, Iuri estava agitado. Quis falar connosco, longe do motorista, para dizer: “Ele fala russo perfeitamente. E eu sei que só as famílias próximas de Khadafi mandavam os filhos estudar na Rússia”. Despedimo-lo e contratámos cinco carros para nos levarem em pequenos grupos.
Ao longo da estrada fomos parando em cada povoação, para saber notícias. Iuri, o mais experiente entre nós, era sempre quem construía os cenários mais perigosos. Discutíamos, ponderávamos, decidíamos ora avançar, ora recuar. Tentávamos ser racionais.
Havia o medo e havia o fascínio. Todos conhecíamos bem a cidade de Bengazi, mas não era difícil imaginá-la transfigurada. Nunca é. Se nos disserem que alguém muito familiar enlouqueceu, começamos logo a pensar que a pessoa, vendo bem, nunca foi muito sã. E não nos admiramos que ela se comporte de forma monstruosa, nem nos intimidamos com isso.
Tal como um amigo que se torna assassino, aceitamos-lhe a perversidade como se fosse nossa. Assim manifestado em território conhecido, este é o Mal que também temos em nós, que podemos dominar e que, por isso, nos atrai. Difícil é conter a imaginação.
Anoitecia e nós, trémulos e mudos, aproximávamo-nos de Bengazi. Passámos por tanques incendiados, pelas casas disformes e tristes dos bairros pobres, mas nem sinais de tiros, chamas ou sangue. A cidade estava igual ao que sempre fora. Atravessámo-la com o coração a martelar o peito até ferir. Chegámos ao hotel sem qualquer incidente. Apeámo-nos, fizemos o check-in, como turistas. “Acontece sempre isto. Imaginamos as coisas muito piores do que elas realmente são”, disse Iuri.


(esperemos que sim.)


5 comentários:

"esperemos que sim" disse...

http://www.imdb.com/title/tt0090163/

Threads (1984)

Documentary style fictional account of a nuclear holocaust and its effect on the working class city of Sheffield, England; and the eventual long term effects of nuclear war on civilization.

VER ONLINE: http://youtu.be/geva0lLP-Zs

Anónimo disse...

Enganei-me.

VER ONLINE: http://youtu.be/_MCbTvoNrAg <- Threads (1984)

Anónimo disse...

Outro filme sobre o mesmo assunto:



http://www.imdb.com/title/tt0059894/

The War Game (1965)

VER ONLINE: http://youtu.be/geva0lLP-Zs



The War Game is a fictional, worst-case-scenario docu-drama about nuclear war and its aftermath in and around a typical English city. Although it won an Oscar for Best Documentary, it is fiction. It was intended as an hour-long program to air on BBC 1, but it was deemed too intense and violent to broadcast. It went to theatrical distribution as a feature film instead. Low-budget and shot on location, it strives for and achieves convincing and unflinching realism.
- Written by io

Part interviews and quotations, part acting, this film simulates the aftermath of a large-scale nuclear attack near a rural area of England. It argues that citizens and Civil Defense authorities are poorly prepared for this eventuality, and describes possible physical, psychological and social damage in graphic detail.
- Written by

O Medo disse...

VIDEO: http://youtu.be/GKVhW51GXzk <- Amália Rodrigues - Fado: "Medo", com poema de Reinaldo Faria e música de Alain Oulman, gravado em 1966 e editado, pela primeira vez, em 1997, no álbum de inéditos "Segredo".
Fonte VIDEO alternativa: http://youtu.be/c6SW5wa9RIg

Quem dorme à noite comigo
É meu segredo,
Mas se insistirem, lhes digo,
O medo mora comigo,
Mas só o medo, mas só o medo.

E cedo porque me embala
Num vai-vem de solidão,
É com silêncio que fala,
Com voz de móvel que estala
E nos perturba a razão.

Gritar quem pode salvar-me
Do que está dentro de mim
Gostava até de matar-me,
Mas eu sei que ele há-de esperar-me
Ao pé da ponte do fim.

Barco Negro disse...

Já que estamos no tema "Amália"...

VIDEO: http://youtu.be/HgkowHa2jZ4 <- Amália Rodrigues sings the fado "Barco Negro" in a scene from Henri Verneuil's 1955 film LES AMANTS DU TAGE [ http://www.imdb.com/title/tt0047818/ ].

The interspersed French dialogue, which contains the most important lyrics, is closed captioned in English. Enable CC in the lower right hand corner of the Youtube player to see the captions in the language of your locale.



http://www.tabacaria.com.pt/poesia/textos/Barco_Negro.htm <- Barco Negro (poema de David Mourão-Ferreira anotado)