a realidade dá-me um beijo. sinto-lhe os lábios suaves, ternos, molhados pela saliva e... eh pah, há aqui uma migalhita do pequeno-almoço. e, caramba, o eterno hálito do amanhecer!
se fosse no sonho, o beijo seria
perfeito. mas minha menina,
hold your horses que estamos na realidade. o que no sonho é romance, na realidade é o punzinho que irrompe pelo meio. ah pois, que isto na realidade há sempre o pormenor-zito não necessariamente aprazível. o trelipatéu que não entra na imaginação da menina. e porque haveria de entrar?! é o sonho então pois!?, e o sonho quer-se como a peça comprada:
sem defeitos.
por isso, quando a realidade enfastia, compra-se o sonho. ui!, o sonho é
muito melhor, o sonho é
sempre melhor. há pois o terrível defeito, proveniente talvez de uma
dissonância cognitiva deficiente, de achar que nada do que
temos é bom, porque nada é
tão bom quanto o que
queríamos ter.
e por isso sonhamos. e preferimos sonhar. e achamos que podemos viver o sonho, e que o sonho será obviamente como o sonhámos. claro, é sempre melhor viver na ilusão do que - PÁS! - chocá-la contra a realidade, e - PÁS! - ver que o sonho não existe, simplesmente porque é impraticável. porque
a ilusão não alimenta, pelo contrário,
mantém a fome. porque a ilusão é o
escape que
não queremos deixar de ter. é a esperança de que podemos não ter o queremos (ou não querer o que temos...), mas que o que queremos existe, sim existe! e existe I-MA-CU-LA-DO.
é a nossa fuga para quando as coisas não são exactamente como queremos, ou achamos que
deveriam ser. porque o nosso "
deveriam ser" é demasiado saudávelzinho, e não admite falhas. o nosso sonho não quer aprender com a realidade, não quer aprender com os erros e os defeitos que parecem só manchar as coisas. porque o
outro, o outro, seja ele quem for, é
sempre maior e
melhor, e percebe-nos
melhor e seríamos muito
mais felizes com ele. no sonho é assim! no sonho funciona! nem que, se virmos bem as coisas,
na realidade ele nem seja como o sonhámos,
na realidade ele nem tenha nada a ver connosco,
na realidade ele nem seja o que precisamos,
na realidade ele nem nos ofereça um futuro. Não interessa!, no sonho ele está lá! e eu quero ser feliz
agora, que se lixe o futuro! que se lixe a realidade.
quando não aprendemos a amar o que temos. porque cansa. porque é real, e na realidade vemos as mesquinhices todas que no sonho não vemos, pois claro!, então se é o nosso sonho, porque o haveríamos de sonhar com defeitos?
oh tristes princesas entregues ao sonho de algo que não é. que soa bonito e perfeito nos cadernos e nas estórias, mas que nunca conta o dia-a-dia numa casa, com distâncias pelo meio, o dia-a-dia com um WC com algumas impurezas, a lavar a loiça, a ver o futebol, a cozinhar, o cansaço do trabalho, o dia que corre mal, a dor de cabeça, a impaciência, as pernas altas da vizinha, a tampa da sanita aberta, os pêlos púbicos pelo chão, nos lençóis, a falta de pão, as compras, as batidelas do carro, os problemas de última hora, o jantar da tua amiga que não me apetece ir, os cafés com os amigos, as noites na disco, eu quero dançar e tu estás cansado, tu queres beber mais um copo e eu quero ir dormir;
o hálito verde não fresco numa manhã tremida por um despertador e por uma vida real da qual
também-mas-não-só faz parte o sofrimento, a dúvida e a insatisfação.
por isso, quando a realidade não acomoda o sonho, deixa-se a realidade e compra-se o sonho. e paga-se caro.
não há, de facto, nada de mal em sonhar. o
problema é quando nos apegamos ao sonho e deixamos de viver a realidade. o problema é quando
desistimos da realidade por um sonho que
mantemos sonhado, o problema é quando
desistimos de encontrar na realidade - no meio dos hálitos, dos punzinhos, das incompreensões do dia-a-dia - os lábios ternos que nos aconchegam e que, com uma imprecisãozinha ou outra, afinal até encaixam nos nossos.