primeiro habituou-nos a ela. à destreza, ao quanto-queres desdobrável em mãe irmã tia avó bisavó e devota de nosso senhor jesus cristo. habituou-nos às mãos grossas e calejadas que secaram o queijo, estiraram as filhozes, bateram o pão-de-ló sequinho e dourado, as mesmas que durante anos lavaram paninhos, alimentaram 8 bocas saídas do ventre, estriparam a terra, esfolaram animais, e desfiaram candidamente as contas do terço, aninhando-se depois sobre o colo numa quietude de alma.
(aquelas mãos que te vi brancas)
habituou-nos à ligeireza, aos caminhos ao terço por amor a cristo, aos caminhos à Terra e à outra terra e onde fosse que tivesse que ser - o que veio da vida foi para aceitar e amanhar.
(aquele corpinho que te vi mirrado)
depois a vida pregou a rasteira e abrandou-lhe o passo. continuaram as mãozinhas ágeis e a carinha risonha enquadrada na trança de cabelo enrodilhado e longo, mas não tão longo quanto a estrada percorrida e os 96 invernos.
(aquelas madeixas que te vi de cinza)
depois cortou a trança, e foi como se cortasse o passado. continuaram os olhos pequeninos felizes de pouco, a notinha pelo natal, pelos anos e mais quando fosse e o coração achasse. continuaram as palavras e o hábito das histórias com que encheu os serões e as nossas cabecitas de mimória muita mimória de outros tempos e costumes.
depois foram as histórias. uma a uma foram sendo apagadas, perdida as páginas, esquecidas, no percorrer das coisas, enquanto as perninhas outrora altas se entorpeciam com o anoitecer.
depois foi-se a mimória toda, e deixou de nos conhecer. e foi-se quem ela era também. foi-se o sorriso e o olhar, num vácuo interrompido apenas por beijinhos de graça vá-se lá compreender os desígnios do criador e o porquê das coisas. ficou-lhe o mundo lá dentro, e nós cá fora sem lhe chegar.
(se eu pudesse ver o que tu vias, aí e quando encerraste os olhos)
depois foi-se a presença. tinha sono, muito sono. isso, dormir só e sonhar quem sabe. pois pois é. foi-se a força e a vontade. e, por fim, num último sopro, a vida.
(julgo que as pessoas, se chegarem a percorrer a velhice, se vão afastando devagarinho. deixando isto, deixando aquilo, uma coisa de cada vez. talvez para não custar tanto, a nós e a eles. o ser humano habitua-se, que remédio tem senão habituar-se, vê-los descer os degraus um a um, com vagar e paciência. e,
se assim fosse sempre, o mundo seria tão mais justo e a vida também: um degrau de cada vez, até chegar ao último. mas o último, por rápido ou mais devagar que chegue, é sempre demasiado grande.)
5 comentários:
♥
beijinhos
sim... onde?
s.-inha :)
onde é que se enfia a luz quando se corta a corrente?... :_;
http://img840.imageshack.us/img840/4739/jru1418789998.jpg
Onde?
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