quarta-feira, março 31, 2010

vislumbre



eram três da tarde quando o senhor marcelino a viu. eram três e um quando o sr. marcelino tombou.

ele. era um homem calvo, de meia idade, e bochechas pingadas. morava numa das ruas da baixa e desde a viuvez que se metia sozinho pelos cantos, cambaleando ao som do vinho. por estes dias ia circundando pelo parque, entregue às vozes soltas dos seus pensamentos.

ela. tinha a pele morena, lisa, e os olhos verdes de verdes vários. a luz batia-lhe de chapa, e descascava-lhe a beleza. tinha as formas cheinhas e arredondadas - pois quando o sr. marcelino, restabelecido da queda, correu desenfreadamente no seu encalço e se abraçou estampadamente nela, não se lhe tocavam as mãos.

ergueu-se, e ali ficou. e ali esteve ele. nos restantes dias, nas restantes noites. de olhos a sonhar, embalado sobre o fresco peito dela. as pessoas passavam e olhavam-nos. ele seguia-as com o olhar, rodopiava em torno dela e, fechando os olhos descansado, sorria. ele, nos braços fortes dela. ela, aconchegada no abraço dele. ele apertava-lhe o corpo contra o seu e dançavam. ela estendia os braços ao céu, e dançavam. os dois. ao vento. dançavam suavemente sob o luar de Janeiro, sob as chuvas de Abril, e o voo das folhas secas de Outubro. e, ao som do chilrear dos pássaros, dançavam os dois até adormecer.

(eram três da tarde, três, quando o sr. marcelino se apaixonou pela menina árvore.)


4 comentários:

um mundo ao contrário disse...

"sonhei
que o céu era amarelo
e o sol de um profundo azul

que vivíamos de noite e
sonhávamos de dia"

O Chefe disse...

Sempre ouvi falar de tree huggers, mas nunca pensei que fosse literal

menina de porcelana disse...

olha, já eu, desconhecia esses abraçadores. agradecida estou :)

compreendo que não seja simples ter 'borboletas no estômago'... mas 'abraçar uma ávore', J, porque não torná-lo literal?

:)

(experimenta!)

José Gomes Ferreira, Eléctrico disse...

(Canção daquela borboleta verde que vi, há momentos, aturdida num passeio de Campolide.)




Borboleta verde,
aqui não há flores.
-Procuras nas pedras
jardins interiores?

Borboleta verde,
aqui não há zumbidos.
-Procuras nas pedras
perfumes dormidos?

Borboleta verde,
aqui só há calçadas.
-Procuras nas pedras
as flores geladas?

Borboleta verde,
chama quase morta.
-Também eu, também,
aos tombos nas pedras,
não encontro a Porta.



José Gomes Ferreira