quarta-feira, março 31, 2010

vislumbre



eram três da tarde quando o senhor marcelino a viu. eram três e um quando o sr. marcelino tombou.

ele. era um homem calvo, de meia idade, e bochechas pingadas. morava numa das ruas da baixa e desde a viuvez que se metia sozinho pelos cantos, cambaleando ao som do vinho. por estes dias ia circundando pelo parque, entregue às vozes soltas dos seus pensamentos.

ela. tinha a pele morena, lisa, e os olhos verdes de verdes vários. a luz batia-lhe de chapa, e descascava-lhe a beleza. tinha as formas cheinhas e arredondadas - pois quando o sr. marcelino, restabelecido da queda, correu desenfreadamente no seu encalço e se abraçou estampadamente nela, não se lhe tocavam as mãos.

ergueu-se, e ali ficou. e ali esteve ele. nos restantes dias, nas restantes noites. de olhos a sonhar, embalado sobre o fresco peito dela. as pessoas passavam e olhavam-nos. ele seguia-as com o olhar, rodopiava em torno dela e, fechando os olhos descansado, sorria. ele, nos braços fortes dela. ela, aconchegada no abraço dele. ele apertava-lhe o corpo contra o seu e dançavam. ela estendia os braços ao céu, e dançavam. os dois. ao vento. dançavam suavemente sob o luar de Janeiro, sob as chuvas de Abril, e o voo das folhas secas de Outubro. e, ao som do chilrear dos pássaros, dançavam os dois até adormecer.

(eram três da tarde, três, quando o sr. marcelino se apaixonou pela menina árvore.)


domingo, março 28, 2010

as normas dos (a)normais



m.: acho que ela é estranha.
eu: ela? estranha?! mas estranha como?
m.: oh pá, estranha. sei lá!
eu: mas estranha, estranha porquê?!
m.: sei lá... acho-a banal.



(adoro as tuas 'pancas')

segunda-feira, março 22, 2010

novos ricos


no bairro em que morei, todas as casas tinham jardim ou terraço. dava trabalho mas também permitia outras liberdades. ter um cão e dar-lhe um espaço, por exemplo. o meu vizinho tinha um dálmata. lembro-me de passar na rua e de o ver trancado na sua casota, a qual consistia numa "psicina" de tijolo com paredes de rede. ia ladrando a quem passava, e era uma tristeza vê-lo ali confinado à solidão. talvez por isso, ou por um certo receio obscuro dos donos, de vez em quando soltavam-no e deixavam-no à vontade. nestas alturas, eu sentava-me sobre a calçada da nossa casa e ficava a observá-lo. vum, vum, vum. uma volta e passava por mim. e outra, e outra. eu ficava a vê-lo, e a tentar percebê-lo. ali às voltas à casa, a correr desenfreadamente. como os ciclos da lua acelerados. como se não houvesse amanhã. ou apenas como se receasse que amanhã já não fosse livre.

(às vezes ficamos tanto tempo presos, que a liberdade nos dá para a loucura. é ver-nos correr correr e correr, cegos. a bater contra paredes, também. depois cansamo-nos. um dia. fica o que passou e aquilo em que nos tornámos. e se valeu a pena ou não.)


quarta-feira, março 17, 2010

as coisas num contexto.


primeiro foi o olhar. só depois veio o verbo.

cresce no regaço da mãe. cresce, cresce. mais e mais. a cada dia. sentem-se os dois, ao princípio, no silêncio. descobrem-se. percorrem as sensações, mesmo sem as saber. falam também. os dois durante meses. anos! aninham-se um no outro procurando conforto. o cheiro da mãe, o cheiro do filho. o toque. o contacto, corpo no corpo. o quente da pele. o filho cresce. o corpo da mãe. o corpo do filho. amam-se, mas há todo um mundo que os separa. e aos corpos também. cria-se a distância, o ver de fora. ao longe.

se tivessem sido só os dois, olhos colados, não veriam mais nada. não diriam mais nada. nem haveria mais nada. seria o sonho.

(o que custa é a falta da pele, do cheiro da pele. de tocar na pele, e de a percorrer. mas há a vida como pano de fundo.)


segunda-feira, março 08, 2010

busca do prazer

    
vi passar o tempo no meio dos dois sem que nenhum pestanejasse. sentados à mesa, aguardavam o momento do dia. ela deitava um olho discreto à televisão, ele fixava o vazio. ou a pele dela quando era jovem. ou quando ainda se amavam e tinham assunto à mesa. agora, escolhem o restaurante mais caro da cidade, pedem o prato mais gourmet da casa, e saboreiam-no. Está bom, não está? Óptimo. depois, nada. as coisas arrefecem. ela deita um olho discreto à janela, espreita lá fora. ou as memórias de quando se amavam e se olhavam nos olhos. ou quando ele pegava na mão dela e a saboreava fixamente. agora, ele vigia-a sem a olhar. mais nada. há ainda um bacalhau despedaçado para acompanhamento, mas os corações já vêm frios.
     
       

quinta-feira, março 04, 2010

nada, não é nada.
















adoro como as pessoas se contradizem. deve ser do nervosismo de dizerem coisas bonitas.