A Baixa de Coimbra pela manhã, para quem passa no Mercado e apanha ocasionalmente o autocarro para a zona do Hospital, é uma amálgama de movimentos pendulares – casa-mercado, casa-trabalho, casa-hospital, para mais tarde ser mercado-casa, trabalho-casa, hospital-(com sorte)-casa.
Sim, a Baixa àquela hora da manhã não tem nada de novo. Só movimento e rotina. Ninguém olha para os cartazes que mudam, ou para as sombras que desaparecem. Ninguém repara se a rua foi limpa ou se a fonte brota água. (Reparam sim que a menina da frente tem a saia muito curta, e que a senhora do lado tem um amarelo aberrante. O resto não. Há o almoço para fazer e já são 9 horas!) Talvez por isso, naquela manhã notei curiosamente a convergência súbita que se originava na esquina dos Correios. Amotinara-se ali um bando de mulheres oriundas das manhãs do Mercado. Paradas junto à esquina, nos seus 60 anos enérgicos, olhavam escancaradamente para a caixa de electricidade suja e amolgada. Que se passa? Pensei eu, Será Um rato gordo com as tripas de fora? Um regurgitamento ainda fresco de vomitado? O amarelo da senhora do lado respingado de excrementos de pomba? Serão ainda, deixadas por um qualquer estudante bêbado, fezes abismais? Ou seria simplesmente, Um mendigo descoberto? Não. Nada disto. Sozinhas, no imenso fundo branco encharcado em cola de parede, ressaltavam pretas mas reluzentes as letras da palavra
Ex cur são. Uma Ex [pausa] cur [pausa] são! (e logo ao lado, Festa!)
Onde? Quando? querem saber! Lêem rapidamente o cartaz tentando escapar ao apelo da palavra provocante; discutem avidamente o conteúdo. E percebem ligeirinhas que, de facto, nem interessa. Fossem comunistas não fossem, era Uma excursão!
UMA Ex cur são! (e uma Festa!)
Fantástico. Confesso que me arrebata este fascínio dos 60 anos (perdoem-me a redução a esta faixa etária) pelas viagens atribuladas dentro de um autocarro. A malta da terra, as curvas apertadas, o Ai José! Ai Maria!, os sacos a abarrotar e a rebolar de sandes anafadas. O pão-de-ló para a sobremesa, ou a torta DanCake do mini-mercado da Josefa. O garrafão de vinho caseiro religiosamente amparado entre os tornozelos cheiinhos. A toalha rendilhada e bem dobrada para ser deitada na mesa de piquenique. Os peitos farfalhudos de pêlos sobre os quais reluz juntamente com o suor um grossito fio de ouro. As boinas impecavelmente direitas. A saia bem bonita pelo joelho, a camisa de domingo aos folhos, Ou de seda. O tamanco moderno, Ou o sapatinho que comprei ali nas Modas da Rita. Os brincos pendentes que rasgam a orelha. O cabelo a cheirar a laca, com mais caracóis do que as couves que ficaram, naquele dia, daquela vez, a crescer na horta do mercado (a época faz mudar as aparências e as coisas de sítio, mas não lhes muda a Natureza).
Fascina-me. Esta geração, agora já terceirinha, que não se volta a repetir. Esta geração que define que os primeiros 100 anos se passem a trabalhar para o futuro, mas que permite que, a partir dos 50, se acrescente a vontade da escapadinha, dada ocasionalmente, em dias parecidos com o domingo. Fascina-me.
É que neste convívio salubre – traduzido no êxtase da Excursão – manifesta-se mais uma etapa da vida. Havia a idade dos porquês, a idade do armário, e a idade de apanhar os caracóis das couves (a época faz mudar os nomes das coisas e as manifestações, mas não lhes muda a Natureza). Agora, algures depois dos Renault 5 e das carrinhas Peugeot 504 Break, há também a idade do autocarro (leia-se, da Excursão! e da festa!).
1 comentário:
adorei a descrição sem qualquer discrição da geração w.
festa é festa. e foi bonita a festa pá, já dizia o outro.
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