sexta-feira, dezembro 14, 2007

Cinzenta

        
Andam por aí umas criaturinhas que se intitulam pomposamente de Descrentes. Fazem questão de marcar que não acreditam em nada que tenha no nome Sociedade, Justiça, Saúde, ou Governo. Ou simplesmente, qualquer coisa que ultrapasse o centímetro em volta da pelezinha amarelada e retesada que já não sorri de inocência há muito tempo. Então deprimem, descrentes do futuro, e enfrascam-se em ajuntamentos de álcool e medicação. Ou então não deprimem, mas enfrascam-se na mesma em ajuntamentos de álcool e medicação. E então deprimem. Enfim. A sociedade ocidentalizada como fonte de descrença e como meio de falecimento precoce.

Andam por aí esses descrentes. Descrentes do mundo, descrentes da sociedade, descrentes dos outros. Por isso, contam consigo mesmos, com a sua vontade própria, e com os troquitos que desviam aos sistemas comuns e ocidentalizados. Pois estes descrentes vão-se safando, porque contam com o seu individualismo e amor-próprio, e isto basta-lhes para seguir em frente. Mas depois há os outros. E os outros têm que se lhe diga. Não crêem no mundo, mas também o mundo que se lixe, é injusto e blá blá buah…. Não crêem na sociedade, que por si própria cria a injustiça. Não crêem no governo nem nas políticas, porque sabem que continua a ser parte da mesma merda. Não crêem nos outros, porque são uns egoístas e apenas vêem o que lhes interessa. Mas – e agora-algo-verdadeiramente-diferente – também não acreditam em si próprios.

E é assim que estes seres, a que chamamos de intimamente descrentes, vêem o mundo como o espaço e palco para escorregar, ouvindo de fundo a gargalhada afiada. Têm a audição apurada para qualquer crítica, e as mãos prontas para pegar na inchada e cavar bem fundo em presença de qualquer elogio. Ou então para ficar de mãos a abanar, porque o elogio decerto não era para eles, e também há sempre a sorte pelo meio. Estes seres sofrem por antecipação o que nunca era para chegar, mas que fazem por ir buscar e arrastar até onde se encontram. Estes seres não se cansam de se destruir e enganar a si próprios, até que seja demasiado tarde para um resgate possível. Estes seres escondem-se dentro de si próprios e tentam esquecer que o mundo lá fora também é palco para as suas vitórias. Porque estes seres não vêem as vitórias – tudo é e continuará a ser imperfeito. Estes seres não têm salvação, porque se recusam a salvar-se a si mesmos.

E é por isso que nós, os permanentemente insatisfeitos, estamos condenados ao fracasso. E à solidão.

 
(13.12.2007 21:59)

quarta-feira, dezembro 12, 2007

Bragança


“Quando decidimos a estrutura, decidimos a luz. Nos edifícios antigos as colunas eram uma expressão de luz, sem luz, luz, sem luz, luz, sem luz, percebe?” (Louis Kahn, 1901-1974)

Columba dançava.

Sobre as pedras negras e sujas da calçada, a luta não havia sido ainda consumida. Eram as asas estendidas a bater contra o chão, numa dança mole e desatinada – os últimos suspiros do vento no teu peito, quem sabe…
(Mole o teu corpo. Mole a tarde dourada, e o sol que escorria no horizonte. Moles as minhas entranhas a pensarem nas tuas, por certo atropeladas. Amolecidas.)

Não vi sangue nem tripas. Só o teu corpo amachucado num último arrastar. Num rodopio decrescente e finito. Pensei – Crua a luta em que sabemos já o fim, mas batemo-nos ainda desenfreadamente para morrer a tentar. Feroz o término não anunciado que espera nas esquinas mais douradas e nos voos mais livres. Bruta a mão alheia que manda mais que tu na tua própria vida. Como facas ao pescoço ou comida para servir quente, fria. Como as noites em branco das mães, e as manhãs pretas quando os filhos morrem primeiro. Quando a morte antecipa o tempo e apaga os voos.

Cruéis os finais sem Razão.

Mas devaneiam ainda as pombas sobre a calçada escura. Inconscientes da dança, correm o risco afinal. E quando caiem, cinzentas e esfaceladas, dançam até que a exaustão as consuma e as torne em pedras, negras e duras.
26Set07, 11Dez07

quarta-feira, dezembro 05, 2007

Diz-me

Diz-me que tudo vai ficar bem. Que o mundo é como o imaginámos e tudo será certo quanto a chuva no Inverno e o sol no Verão.

Diz-me que o dia é para viver e a noite para sonhar, e que quando morremos a vida foi vivida e a noite sonhada.

Diz-me que é só da minha cabeça, e que estes bichos que me aparecem são pesadelos de menina assustada. Pesadelos sem tempo nem lugar – porque a noite é para sonhar e a vida para viver.

Diz-me que as coisas são simples, e que não há que pensar. E que quando escolhemos, escolhemos certo.

Diz-me que a paz chega quando somos livres, e que as angústias desaparecem quando fazemos o que sentimos. Quando sentimos o que fazemos.

Diz-me que o céu é azul e que apenas se encarniça ao final da tarde. Diz-me que morrerei de velha e que os filhos virão quando eu os quiser ter.

Diz-me que as coisas são como as queremos, e que aquilo que queremos é claro como um dia de sol, transparente como a água de um ribeiro.

Diz-me que quando crescemos, ainda vemos o mundo através dos olhos de um menino. E que mesmo que mintamos aos outros, nunca mentimos a nós próprios.

Diz-me que as dúvidas não existem – que são apenas bichos que inventamos. Porque a vida é simples e o caminho é só um.

Diz-me que não sou eu que escolho o caminho. Que temos um destino e não o pudemos mudar.

Diz-me que esse destino que me foi dado estava quebrado à partida. E que eu não o posso consertar.

Diz-me que a culpa é de Deus que nos espera na esquina. Ou do Diabo que se esconde por entre campos de Açucenas. Diz que não é nossa nem minha. Ou apenas que não é minha…

Diz-me que sou eu que tenho medo de tudo e de nada. Que sou eu que penso e invento. Que sou eu que complico, mas que afinal não é nada.

Diz-me o que quer que seja, mas sossega-me o espírito.

Pois se nada é certo neste mundo, como viver feliz sem ter a certeza de nada?

19.07.07; 30.09.07; 04.12.07