segunda-feira, janeiro 12, 2009

Ciscos


Quando eu era pequena ouvia vezes sem conta a minha avó, mãe do meu pai, ler a história da santa Teresinha. Da história em si pouco me lembro, mas lembro-me dos pormenores, de como o livro era pequeno e fino, e como a capa era castanha e dura. De como tinha palavras, muitas, que a minha avó desfiava com cuidado, lendo o livro de uma ponta à outra. Começava na capa, com o título, e logo prosseguia para os pormenores técnicos, como a morada da editora, o número de edição, a data e o local de impressão. De como só então lia a história, sem esquecer uma palavra, mas também sem esquecer um sinal de pontuação. Sim, a vírgula, o ponto, os dois pontos, os pontos de exclamação e de interrogação, o travessão. Tudo era lido.

O meu pai seguiu-lhe os passos e, quem sabe, o modo de vida. O outro dia, enquanto fazíamos o percurso até ao almoço de Natal, enquanto a minha irmã e a minha prima discutiam lá atrás os filmes, as novidades e a vida, o meu pai, imune a todas aquelas palavras, insistia em descrever o percurso. Ora aqui 60 Km, eu vou a 70Km, tenho que reduzir. Lau, e é extensa Lau, 60 Km é a velocidade máxima. Terminou Lau. E assim por diante em pormenores que já não me cabem na cabeça, couberam, mas deram lugar a outros.

(quando as coisas são muitas, para ressalvar o importante, algumas têm que se deixar para trás.)

Sorri. Pensei para mim, deve-me estar no sangue também. Eu também gosto de escarafunchar as coisas para as descrever depois no meu auto especial, assegurando que não sejam esquecidas: o Auto das Queixas de Vida. Sim, adoro queixar-me. E sou óptima nisso. Só que eu não me queixo das coisas reais, não!, isso seria bárbaro e sem graça. Não, a piada está em poder inventar. E ora aqui está uma-coisa-em-que-decidi-inovar – eu não me limito a ler os sinais nem as placas, não, eu gosto de acrescentar coisas! (e de retirar outras à socapa, mu-ah-ah-ah). Pego nas coisas, selecciono as coisas bonitas e, pumba, deito-as na forma do esquecimento. E pronto, quando já frias e suficientemente amolgadas, junto-as à minha caixinha de sonhos partidos. E ninguém as tira de lá, nem mesmo eu. Então, enumero e conto tudo o que resta. E só depois – só depois! – faço o Auto e arrumo por temas: Tema n.º 1, a vida é demasiado complexa, Tema n.º 2, quero ser outra-coisa-qualquer, Tema n.º3, a vida não vale a pena. Vale! Não vale. Vale, vale! Trampa!...

(trampa sim trampa! é ano novo oh menina! pelo menos nesta altura devíamos conseguir ver as coisas mais bonitas, ainda que as mais pequenas, estender-lhes o dedito e trazê-las até à nossa atenção. e escolhê-las para (re)lembrar. porque se muita coisa cabe cá dentro, nem tudo cabe cá dentro. devíamos escolher as coisas que valem a pena ficar. o Irving Berlin escreveu uma vez, If you worry and you can't sleep count your blessings instead of sheep. And you’ll fall asleep counting your blessings.)

4 comentários:

Filipa Júlio disse...

"If you worry and you can't sleep count your blessings instead of sheep." ADORO!
eu costumo contar pastores em vez de ovelhas. como é uma profissão em extinção, adormeço num instantinho.
:)

O Chefe disse...

Lau... huh?

Agora, agorinha! disse...

Mudam-se os tempos...

...e as vontades?



http://iss.astroviewer.net/ <- Where is the [...] right now?

E se olharmos pela janela:

http://www.ustream.tv/channel/iss-hdev-payload

Ciscos e caixas ... disse...

É incrível como se descobre sempre uma nova relação entre as coisas...

(muitas vezes relações que nem são "reais")