quinta-feira, dezembro 18, 2008

Hereditariedade


Anteontem à noite, ainda que por instantes, quebrei um bocadinho do mundo da minha avó.

Eu explico. Nos seus 94 anos de vida, a minha avó já não tem vida social. Para além da pouca mobilidade, já pouco vê (digamos que ainda reconhece os netos mas que a taxa de erro ronda os 5%... e se lhe perguntarem se o que tem no prato é peixe ou batatas, aproxima-se dos 90%). Ora, quem pouco ou nada vê refugia-se no que ouve, e se o volume for criteriosamente ajustado (i.e. no máximo!) é quase impossível não ouvir. Aparece então, para preencher o vazio dos dias e o lugar no céu, a sessão do terço, religiosamente acompanhado na famosíssima RR (também conhecida por Rádio Renascença) todos os dias às 18.30. E se por acaso passa o relato da bola ai o relato da bola! Fica desconsolada mas não usa palavrões pois a minha avó sabe palavras esquisitas mas não diz palavras feias. Ora,

o dia tem 24h e os 30 minutos de terço é coisa pouca para quem já não tem muito que fazer senão dormir, esperar pela hora das refeições e circular de tempos a tempos para cumprir calendário(s). Ora, acontece que

por volta da hora de jantar, enquanto se aquece debaixo das mantinhas no sofá e vê com pesar a minha mãe subir e descer 2 lanços de escada para lhe trazer a sopa, anuncia-se no grande ecrã (não tão grande que seja visível para os pequeninos olhos da minha avó) o magnífico, único, e portador da boa disposição, senhor Carlos Malato. Ora,

a minha avó, perdida nos êxtases da audição e na voz sonora daquele senhor, lá acaba por prestar atenção às perguntas. E visto que até sabe palavras esquisitas lá acerta volta e meia nas respostas e, pronto, ganha afecto ao senhor. Então, nas noites em que apareço, solta-me ansiosa a confissão

- daqui a pouco vem A Herança!

Não é que eu esteja por-dentro-destas-coisas, mas na outra noite achei por bem esclarecê-la. E actualizá-la. Afinal, ainda que seja Natal, as verdades têm que se fazer saber.

- oh vó? Sabe aquele programa do Malato? Aquele programa que a avó gosta! A avó não sabe mas aquilo já não é A Herança.
- Não?
- Não vó, isso era dantes, agora já não há disso. Agora, as pessoas não recebem o que merecem ou mesmo o que é justo [mas não que a herança de facto garanta isso…]. Não. Agora as pessoas manipulam para receber, fazem Jogo Duplo.
- Ai é?
- É, vó…

(o que ela não sabe é que dantes também era assim, mas que nem sempre os olhos vêem e nem sempre os ouvidos ouvem o profundo-sentido-das-coisas.)

Doeu-me. Mas lá ficou com a ideia. Claro que eu sei que não há-de durar muito e que hoje à noite, por volta da hora do jantar, quando as vozes do ecrã anunciarem o Malato abençoado, a minha avó vai meter os ouvidos à escuta e dizer à minha mãe que

- lá vem A Herança!

E que hei-de eu fazer? Talvez esperar que esta forma “simples” de ver o mundo, esta forma que escuta para logo depois obliterar as partes-feias-da-existência, me seja passada de alguma forma em herança pelos mistérios duplos da hereditariedade.

quinta-feira, dezembro 11, 2008

Closer



There are some truths that we should not know
so there are some truths that we should not ask

so there are some truths that we should not tell.




(truths? what truths? as verdades
demasiado perto desfocam.)



quarta-feira, dezembro 10, 2008

Infinito além














(Luz, Dezembro 2008)


«O que mais há na terra, é paisagem.»*
E ainda bem.

(* José Saramago, 1980, Levantado do Chão, encandeado pelo Alentejo)


sexta-feira, dezembro 05, 2008

Irrefreável


Temos as coisas à nossa frente e, impulso irresistível, tratamos logo de as compor, de as arranjar, de as meter na ordem. Como se as coisas tivessem ordem e não fossem somente um punhado de contínuos, sem qualquer direcção ou sentido.

Vejamos: acontece-nos a maior coisa, a coisa mais injusta, a coisa mais incerta. E, zás, Não percebo, tem que haver aqui qualquer coisa, Isto tem que ter uma razão, uma explicação plausível. Então, pegamos nas coisas, arrumamos as coisas, damos números e nova ordem às coisas. Damos um sentido às coisas. Mas esquecemos que essa não é a ordem natural das coisas, que as coisas não têm fado, nem sequer um sentido.

Que são um punhado de coisas, só isso. Que a minha verdade não é mais verdade que a tua só porque a tua segue uma lógica e a minha vive em anarquia. Não. À verdade não interessa a lógica, a verdade não precisa de ser válida.


(Confrontei o meu pai, intimei a minha mãe. Exijo saber! – o que foi que aconteceu ao meu triciclo! O triciclo? Qual triciclo? Ah, O triciclo. Não sei. Não o deixámos lá na escada? Alguém o levou, nunca se soube quem. Quero saber a verdade! Foram vocês que o fizeram desaparecer! Nóoos? Não filha… Senti-me ridícula. Uma teoria tão boa, assim deitada pelo chão. Segundos de lucidez assim desperdiçados pela parte-desconhecida-das-coisas, Bolas.)


Mas o pior disto tudo ainda está para vir. E o pior é que, na procura desesperada de um sentido-para-a-existência, acabamos por perceber que as coisas-para-acontecerem também não precisam de ser verdade – que se dane a verdade! quem sabe a verdade? ninguém. e ainda assim tudo existe e é. – Não. As coisas-para-acontecerem basta-lhes chocarem umas com as outras.

terça-feira, dezembro 02, 2008

Doce.














(Lagameças, Novembro de 2008)


Amarg(ur)a-me pensar que

os frutos maduros
caiem de árvores já secas.

(mas quando caiem
caiem belos e iluminados.)


Outros, verdes ainda,
Fica por lhes florir o sabor