O senhor doutor diz que eu faço parte de uma franja. Não sei o que quis dizer, mas deve ter a ver com o crianço que vai nascer. Disse-lhe que queria tudo ao natural, e ele disse-me que eu devia tomar epidural, eu disse que não queria cá drogas, que queria sentir o meu filho a sair-me das entranhas. Mas
«Para Luís Mendes da Graça*, a ideia ‘romântica’ do parto sofrido tem que passar à história. ‘Estamos no século XXI e não podemos aceitar que os procedimentos médicos sejam comparáveis a países de Terceiro Mundo.’ Há, no entanto, ‘algumas franjas da população que ainda oferecem resistência à epidural. Mas, para o especialista, trata-se de ‘uma esmagadora minoria que ainda pretende ter uma falsa visão poética e bucólica da vida’, porque, na globalidade, a preferência das mulheres recai sobre a epidural.» **
Não percebo. Eu não tenho nada contra a epidural, não, nem tenho. Longe disso: as grávidas têm o direito de optar. Do mesmo modo, à partida, também não tenho nada contra este senhor. No entanto, não consigo evitar ter algo contra opiniões como esta, que catalogam como ainda retardadas as pessoas que preferem fazer o parto sem anestesia. E continuo. Tenho sim contra opiniões que reivindicam uma visão-da-vida verdadeira e que catalogam como falsa o que não lhes fica por baixo da saia. ou da batina.
Mas, de qualquer modo, confesso que nem percebi bem a questão. Isto é, se a visão da vida é falsa porque é (a) bucólica e poética – e não devia; ou se (b) isto de insistir em sentir as dores do parto é a visão bucólica e poética falsa, pois existe a visão bucólica e poética verdadeira. De qualquer das formas, suscita-me reacções viscerais. É que se existe uma Verdadeira, por favoooor, elucidem-me acerca do caminho, para que também eu possa ver!
Mas até calculo que esta visão Verdadeira da vida venha por meio de anestesia. Parece que, depois dela, o mundo muda aos nossos olhos. (de facto, o David também andou nas anestesias e realmente experimentou outra visão da vida. agora, se verdadeira ou falsa, realmente, transcende-me.)
Eu, no meu desconhecimento das coisas, prefiro experimentar primeiro, em vez de me converter logo à maioria por meio de conformismo. E, no seguimento desta ideia, aviso que nem vou ser radical. Não. Hei-de ter um parto SEM anestesia e, depois, outro parto COM anestesia, e nem tem que ser por esta ordem. Só então, já devidamente esclarecida, decidirei como quero ter a nova palete de filhos.
Mas talvez o problema desta minoria nem seja (b) a visão-da-vida bucólica e poética falsa. Não, talvez a falsidade desta visão da vida - que faz recusar a anestesia - passe mesmo por ser demasiado romântica. Lamento. É que, novamente, não percebi. É assim tão mau ter uma visão romântica das coisas? É assim tão mau querer sentir as coisas até ao seu limite?
Não sei, se é falsa ou se é verdadeira. Nem, muito sinceramente, me interessa tal dicotomização. Porque, na minha singela opinião de possível-futura-parturiente-em-situação-de-gozar-de-liberdade-e-vontade-própria, não vejo que melhor visão se pode ter da vida se não uma que é bucólica e poética.
(de vez em quando, canso-me de ser morna. mas prometo que um-dia-destes tentarei voltar à harmonia - com a natureza, com as pessoas, e com o mundo. enfim, à harmonia com o universo – e com estas opiniões.)
[*director do departamento de Obstetrícia e Ginecologia do Hospital de Santa Maria, em Lisboa.
** fonte: Jornal do Centro de Saúde, Ano 5, nº 49, Fevereiro 2009]